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Um mês sem Laudemir: quem era o gari, pai, avô, marido e amigo morto no trânsito em BH

A Itatiaia foi até a casa de ‘Lau’, em Contagem, e conversou com Liliane, uma mulher que se apega nas memórias de um marido amoroso e dedicado para vencer a dor do luto

Liliane, Laudemir e o netinho João Lucca, xodó da casa

Naquele dia, Laudemir acordou às 2h30 da madrugada, saiu de casa antes das 4h. Às 6h já havia preparado o café para todos os seus companheiros de trabalho, do RH ao caminhão. Perto das 9h, já havia corrido alguns quilômetros limpando uma das maiores capitais do país. Tinha sacos de lixo na mão, depois de recolher resíduos espalhados pela rua, quando teve a vida ceifada de forma cruel. Porém, Laudemir de Souza Fernandes, 44 anos, é mais que o “gari que foi assassinado”.

Laudemir é pai, marido, amigo, avô e padrinho. Tímido, queria conhecer a praia, passar um fim de semana em uma pousada. Casar com o amor da sua vida na igreja evangélica. Ele varria a casa depois de chegar do serviço, não deixava sua mulher carregar as compras, abdicava de dormir para acompanhar um idoso desconhecido no hospital. “Lau” era gari, com muito orgulho.

Essa é a série de reportagens especiais “Um mês sem Laudemir”, onde contaremos um pouco da vida do homem que adorava limpar uma rua suja, deixando-a um brinco. Mas que amava chegar em casa, onde, mesmo cansado, era feliz.

A Itatiaia esteve presente no Bairro Darcy Ribeiro, em Contagem,na Grande BH, onde Laudemir vivia com a família: a esposa Liliane França da Silva, 44 anos, técnica de higiene bucal, as duas enteadas, o marido de uma delas e o netinho do coração e afilhado, João Lucca, de um ano e sete meses, o grande xodó e parceiro do gari. Na visita, ouvi histórias sobre um homem tímido, mas generoso, carinhoso e preocupado com o bem estar dos outros, conhecidos ou não.

Coisas do destino

Ao receber a reportagem, Liliane estava vestida com aquele que tem sido seu uniforme no último mês: a camisa laranja com o rosto de Laudemir, um protesto que não tem sido nada silencioso, apesar de seu tom baixo e tranquilo de falar. Sua luta diária por justiça e melhores condições para os garis tornou-se o motor que a mantém viva em meio ao luto.

O papo ocorreu na sala da casa, impecavelmente limpa e bastante arejada. No suporte da TV, o relógio de Laudemir, que assim como os outros pertences do homem, seguem intocados, amenizando o vazio que a falta dele deixou no local.

Liliane e Lau estavam juntos há cinco anos, porém, a história deles se cruzou muito antes disso. O casal estudou na mesma escola no Bairro Nova Contagem, mas não se falavam na época. O primeiro contato direto aconteceu em 2020. Ela enviou uma corrente de oração para várias pessoas via Messenger. Ele respondeu. E não pararam mais de conversar até as últimas horas da vida do homem.

“Ele foi chegando, com o jeitinho dele e acabou ficando. Quando nosso relacionamento começou, combinamos o seguinte: ‘Eu cuido de você, você cuida de mim’. Ele tinha o passado dele, eu o meu. A gente ia trabalhando isso. E foi assim, até o último dia”, contou ela.

Para Liliane, a bagagem do casal, ela com duas filhas, à época com 19 e 20 anos, ele com uma de 10, fez com que o relacionamento nascesse sólido, ainda que com dúvidas por sua parte. Ela reconhece que teve dificuldades de aceitar alguém tão preocupado com cuidar dela.

“Ele era muito compreensivo, companheiro e na dele. Não gostava de embates. A preocupação dele era nos fazer felizes, era meu bem estar. Ele poderia estar de qualquer jeito, mas eu tinha que estar bem, minhas meninas bem, o redor dele bem. Não era uma pessoa egoísta. Eu não estava acostumada com isso, com esse cuidado”, relatou.

Laudemir e Liliane estudaram na mesma escola, mas começaram a se falar muitos anos depois

‘Um cara diferente’

Liliane contou que o jeito de Lau a cativou. Entre alguns casos que ela contou, dois se destacaram.

O primeiro, um senhor com câncer terminal que passou mal e pediu ajuda na vizinhança. Liliane, que havia deixado o trabalho às 23h, e Lau, que tinha ido buscá-la, o acudiram e levaram ao hospital, já perto da meia-noite. Mesmo tendo que acordar às 2h30 para se preparar para trabalhar, sim, esse era horário que Laudemir acordava todos os dias, ele fez questão de acompanhar o idoso e a mulher dele, ainda que lhe custasse o único tempo de sono da noite.

Já o segundo era uma rotina. Laudemir chegava cedo ao trabalho, antes de todo mundo — para isso pegava o ônibus das 4h na rodovia próxima à sua casa —, e preparava café para todos os seus colegas. Os do RH, que ficavam em um setor diferente, e os da operação. Ele se gabava de ter o melhor café, fato atestado pelos companheiros de trabalho.

Situações como essas, somadas ao esforço do dia a dia, algo que ainda não tinha experimentado, fizeram Liliane ter uma certeza: “Ele era um cara diferente”.

“Deus guardou o melhor dele para mim. Me emprestou o Lau e ele fez o melhor por mim”, apontou Liliane.

Ela contou, também, que a relação do casal com as filhas um do outro sempre foi muito boa. No geral, os familiares dela eram “fãs” de Lau. Segundo ela, seu irmão dizia que se tratava de um “homem de verdade”.

“Homem conhece homem de longe e meu irmão falava assim ‘Esse é homem mesmo’. Falava que o que ele fazia por mim poucos homens fariam por uma mulher. Ele brincava que ele mesmo não faria algumas coisas. Está muito chateado. Não veio aqui depois do que aconteceu, quando vê as coisas sobre fica muito nervoso e chora bastante”, revelou.

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A rotina de Laudemir

Liliane relatou a rotina diária de Laudemir, um dia que começava muito, muito cedo, e que não tinha hora para terminar. Como a gente vem contando, Lau acordava às 2h30, se arrumava — um processo demorado, pelos EPIs dos garis, sete meias, por exemplo, para formar uma “botinha” de segurança nos pés.

“Ele tomava banho, fazia o processo das meias, colocava a roupa e deitava no sofá para não me incomodar. Aí na hora de ir trabalhar ele ia lá, despedia de mim e ia trabalhar. Se era dia do caminhão passar, levava o lixo para fora”, contou ela.

Chegando ao trabalho, ele fazia o café para todo mundo e ajudava a fazer a folha de ponto. Segundo Liliane, ele gostava de seguir o mesmo protocolo diário.

“Ele não tinha hora para voltar para casa, dependia muito. Se em outros trechos algum caminhão estragava, se tinha algum problema, eles iam ajudar. Os garis são muito unidos. Dias de quarta-feira para lá ele chegava às 14h, 15h, mas nas segundas e terças era mais tarde”, relatou Liliane.

Liliane e Laudemir pretendiam comprar uma casa própria

Tímido

Liliane contou que Laudemir era um homem tímido, mas que se soltava quando sentia-se acolhido.

“Era muito na dele. Tinha hora que estava meio ‘atacado’, fazia piadas. Mas primeiro sentia o ambiente. Uma vez saímos com o pessoal do meu trabalho, um jantar. Ele ficou meio preocupado, achando que o pessoal fosse ser muito chique, mas falei que todos eram gente boa. Então ele foi e conversou com todos e quando veio embora falou: ‘Nossa, o pessoal é humilde, né, achei que pudessem não ser, dentistas, né? Mas eu gostei demais’. Ele até falou para marcarmos mais vezes”, lembrou ela.

‘Rastro de alegria’

Já ao fim da longa conversa, que teve uma Liliane nostálgica, mas firme nas suas lutas, tanto por justiça por Laudemir, quanto focada em um novo objetivo: a melhora nas condições de trabalho e segurança dos garis, surgiu um pensamento que mudou o tom de voz da mulher, claramente carregado de orgulho e saudade.

“O Lau era uma pessoa que por onde passava deixava um rastro de alegria, uma pessoa confiável. Eu fico feliz de saber que eu tive uma pessoa assim na minha vida. Alguém que fez parte da minha história. Isso é um orgulho. Eu já tinha orgulho dele ser gari e fazer um trabalho tão importante.

Às vezes ele chegava em casa, um sol quente, escaldante, e dizia:

Saiba tudo sobre o caso:

Maic Costa é jornalista, formado pela UFOP em 2019 e um filho do interior de Minas Gerais. Atuou em diversos veículos, especialmente nas editorias de cidades e esportes, mas com trabalhos também em política, alimentação, cultura e entretenimento. Agraciado com o Prêmio Amagis de Jornalismo, em 2022. Atualmente é repórter de cidades na Itatiaia.