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Um mês sem Laudemir: ‘Os garis não são invisíveis’, viúva se engaja para frear ‘humilhações’

Morte de ‘Lau’ reacendeu discussões sobre os direitos dos garis, expostos a riscos e situações desumanas

Liliane contou que frequentemente vê fotos e relê suas conversas com Laudemir

A morte de Laudemir de Souza Fernandes, 44 anos, assassinado enquanto trabalhava como gari em Belo Horizonte, gerou revolta na sociedade civil e reacendeu o debate sobre a vulnerabilidade da classe, que sofre com o descaso de parte da população. Liliane França da Silva, 44 anos, técnica em higiene bucal e esposa de “Lau”, contou, em entrevista exclusiva à Itatiaia, que “humilhações, xingamentos e ameaças” fazem parte da rotina destes profissionais.

Liliane já se indignava com as histórias contadas frequentemente por Laudemir, ainda que sempre com um sorriso no rosto, no retorno do trabalho. Em certa oportunidade, uma mulher atirou um pacote de sal sobre ele enquanto recolhia o lixo. “É doida”, alegou, chegando em casa, à uma esposa furiosa com as queimaduras no pescoço causadas pelo produto exposto ao sol quente.

Noutra vez, foi atirada uma sacola de lixo de banheiro sobre a equipe. Em certa ocasião, após a equipe pedir água, receberam água… da piscina. Depois da morte de Lau, por mais absurdo que possa parecer, algumas ameaças passaram a acontecer fazendo referência a ele.

Para Liliane, esse é o momento de cobrar do poder público melhores condições para essa classe fundamental para o funcionamento da sociedade. Ela ressaltou: “Se esses meninos pararem de trabalhar, a gente morre afundado no lixo”.

Essa é a série de reportagens especiais “Um mês sem Laudemir”, onde contaremos como o assassinato de Lau, no dia 11 de agosto, fortaleceu a chama da luta de Liliane, que recebeu a reportagem da Itatiaia em sua casa.

‘A importância da justiça ser feita com Renê’

Liliane reforçou a importância de uma condenação severa de Renê da Silva Nogueira Júnior, 47 anos, assassino confesso de Laudemir.

“Toda vez que me sinto sem forças eu lembro que preciso lutar por aquilo que ele gostava de fazer. Que esses meninos continuem, que não tenham esse medo de alguém chegar e atirar neles, de falarem ‘Vou passar o carro em cima de vocês’ e passar mesmo. Por isso a importância da justiça ser feita com Renê. Com isso, as pessoas vão pelo menos pensar ‘Nossa, o Renê foi preso, está lá pagando, ameaçou e matou, então eu não quero ficar na mesma situação’, é preciso lutar, argumentou ela.

Ela apontou que é preciso criar mecanismos de segurança para o garis para que as coisas não escalem para ainda mais violência.

Após a morte de Laudemir, garis têm se manifestado em Belo Horizonte

“Imagina se os meninos tiverem que se defender por conta própria? Eles vão se armar também? Aí qualquer ameaça eles pensem que têm que agir antes que façam algo com eles? Vai virar um faroeste, não vai dar certo. A situação não é boa, é grave”, argumentou.

A técnica em higiene bucal revelou que os garis têm se sentido inseguros. Todo dia de trabalho é permeado de tensão. O assassinato de Laudemir gerou traumas.

“Eles estão trabalhando na rua com medo, angustiados, se sentindo inseguros, saem de casa sem saber se vão voltar. Porque um colega de trabalho deles foi morto pela ignorância de uma pessoa. Isso tudo precisa ser revisto”, contou ela.

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Pequenos gestos que fazem a diferença

Liliane apontou uma série de dificuldades enfrentadas pelos garis no dia a dia. Segundo ela, eles sofrem para comer, ir ao banheiro e até mesmo beber água, muitas vezes recebendo negativas quando pedem. A mulher entende que é preciso leis que garantam a segurança dos garis, mas também mais empatia da população.

O assunto é tão caro a ela que seu tom de voz mudou e foi possível ver a urgência em suas palavras.

“Eles fazem um trabalho tão difícil, tão pesado, com tanta alegria. É preciso respeitar eles. Não colocar seringas, vidro, espetos, mal armazenados. Jogam bateria de telefone fora de qualquer jeito, aquilo fica no sol e explode. Tem a forma de se fazer. Se não sabe, pergunta. As pessoas são ignorantes, acham que eles são menos, não são humanos”, desabafou.

Ela contou que Laudemir e seus colegas já se machucaram várias vezes com lixo mal armazenado. Esse tipo de situação, corriqueira, faz com que eles tenham que andar com um kit de primeiros socorros. De acordo com Liliane, Lau saía de casa com uma mochila cheia de itens, preparado para os constantes desafios do dia a dia.

“Fazem dessa forma para que o serviço não pare e eles consigam chegar vivos. Não é só pegar o lixo. É se manterem vivos, saudáveis, inteiros”, reforçou Liliane.

‘Não são invisíveis’

“Não é só a morte do Lau. Ele já se foi. Mas a equipe continua fazendo o trabalho dela. Quero que as pessoas os vejam como as crianças os veem”.

Saiba tudo sobre o caso:

Maic Costa é jornalista, formado pela UFOP em 2019 e um filho do interior de Minas Gerais. Atuou em diversos veículos, especialmente nas editorias de cidades e esportes, mas com trabalhos também em política, alimentação, cultura e entretenimento. Agraciado com o Prêmio Amagis de Jornalismo, em 2022. Atualmente é repórter de cidades na Itatiaia.