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Cotas de gênero nas eleições completam 30 anos com trajeto de avanço lento e intrincado

Primeira lei que reservava vagas para mulheres foi sancionada em setembro de 1995. Desde então, caminho foi marcado por avanços e resistência contra a perda de espaço

Bancada feminina da Câmara dos Deputados no primeiro dia de trabalho após a eleição de 2022

Há 30 anos, em setembro de 1995, entrava em vigor a primeira lei que determinava a reserva de um percentual específico de vagas para mulheres entre os candidatos nas eleições brasileiras. A medida valia para o pleito municipal do ano seguinte e obrigava os partidos a reservar 20% de sua lista de postulantes para mulheres que desejavam ser vereadoras. Três décadas depois, embora as iniciativas de equilibrar a representação de gênero na política sigam muito distantes de alcançar o objetivo da paridade, foi construída uma história de avanços lentos e intrincados para a participação feminina nos parlamentos do país.

A Lei 9.100/95 foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 29 de setembro. A medida determinava que os partidos tivessem 20% de mulheres entre os candidatos. Embora o momento represente um marco importante mais de seis décadas após a permissão do voto feminino no país, ela foi incluída na legislação brasileira após uma desidratação do projeto original, apresentado pela então deputada federal Marta Suplicy (PT-SP).

O contexto da discussão sobre a adoção da cota de gênero nas eleições é significativo porque demonstra uma realidade que se manteve ao longo das últimas três décadas. O projeto original previa metas mais ousadas, mas esbarrou na resistência dos próprios parlamentares, preocupados com a possível perda de espaço nas casas legislativas.

Suplicy almejava a reserva de 30% das candidaturas em seu Projeto de Lei (PL) 783/95. A taxa não apenas foi reduzida em dez pontos percentuais como o texto foi alterado para que o número total de candidaturas subisse para 120% das cadeiras disponíveis no pleito. Neste formato, os 20% excedentes ficariam disponíveis para mulheres e nenhum homem que já pretendia disputar a eleição perderia espaço.

Para o pleito de vereador em uma cidade com 50 vagas na Câmara Municipal, por exemplo, o partido passava a não indicar 50 candidatos, mas 60, com as dez excedentes reservadas para mulheres.

Em 1997, as cotas foram estendidas para as eleições gerais do ano seguinte. Houve um aumento das vagas destinadas às mulheres para 25% e, nos pleitos posteriores, para 30%. As listas com o número de candidatos excedendo as vagas pretendidas foram mantidas, garantindo que nenhum homem perderia espaço com a medida.

Em entrevista à Itatiaia, a professora da University College London e doutora em ciência política pela Universidade de Oxford, Malu Gatto, explica que o contexto de recente redemocratização brasileira, somado à discussão de uma reforma eleitoral mais ampla, viabiliza que sejam aprovadas medidas que enriquecem o caráter representativo das eleições, como no caso da primeira lei de cotas de gênero do país, em 1995.

“Esse não é um contexto único ao Brasil, aconteceu em outros países da América Latina ou por processo de redemocratização ou de preparação de novas regras para as eleições legislativas. Esse cenário torna, de certa forma, mais fácil a inserção das leis de cotas de gênero nesse pacote mais amplo, porque as poucas mulheres legisladoras estavam ali dentro conseguem negociar. O poder de barganha delas acaba ficando um pouco maior porque é do interesse de todos que esse pacote de leis seja aprovado. Mas isso não significa que não tenha havido resistência, muito pelo contrário”, analisa a pesquisadora.

Resistência às medidas para participação feminina

Gatto é autora de “Candidatas: Os primeiros passos das mulheres na política no Brasil”, publicação da editora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e de “Resistance to Gender Quotas in Latin America” (Resistência às cotas de gênero na América Latina), lançado pela Universidade de Oxford.

Em ambas as obras, a pesquisadora destaca o movimento de resistência dos parlamentares à ideia de dividir o espaço ocupado por massiva maioria masculina. Após as eleições gerais de 1990, para se ter uma ideia, o percentual de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados era inferior a 6% da casa. No censo de 1991, as mulheres correspondiam a 50,6% da população brasileira.

O cenário descrito pela professora está registrado na imprensa. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 4 de setembro de 1995, Marta Suplicy relata as reações negativas ouvidas na Câmara quando seu projeto de cotas era trazido à baila.

“As reações negativas à proposta têm sido muito interessantes pelo que revelam. De alguns deputados, escutei comentários significativos: ‘Elas querem o nosso lugar’, ‘vão ocupar nosso espaço’. Homens que não estão em cargos eletivos demoram um pouco para entender e ficam meio atônitos: ‘O que mais essas mulheres vão inventar?’ Algumas mulheres bem-sucedidas argumentam contrariamente: ‘Quem é competente não precisa de proteção para chegar lá’. Elas se esquecem de que algumas mulheres competentes chegam, mas são minoria. Provavelmente, nem se dão conta de como sua capacidade, garra e seu senso de oportunidade podem ser usados como argumentos para manutenção da exclusão de milhões de outras mulheres”, escreveu a parlamentar.

Os passos seguintes

Instauradas as primeiras leis de cotas de gênero nas eleições, os passos seguintes foram dados para aprimorar a eficiência das medidas. À exemplo do ocorrido na segunda metade da década de 1990, os avanços quase sempre foram conseguidos em brechas relacionadas a reformas eleitorais ou em ações judiciais.

Em 2009, a discussão de uma nova reforma eleitoral ofereceu a oportunidade para a bancada feminina defendeu a reserva de 10% dos recursos de campanha e 20% do tempo da propaganda eleitoral gratuita para mulheres. As ideias foram parcialmente aceitas, mas com a redução dos percentuais para 5% e 10%, respectivamente.

Em 2015, com a aprovação da reforma eleitoral a partir da promulgação da Lei 13.165/2015, são aprovadas a reserva de 10% do tempo de televisão e um mínimo de 5% e máximo de 15% dos fundos partidários para campanhas de mulheres.

Aproveitando as brechas

O contexto de reformas eleitorais amplas, como já destacado, sempre foram importantes para que avanços relacionados a públicos específicos prosperassem. Nas contas de Malu Gatto em seu livro sobre a resistência à aprovação de cotas de gênero na América Latina, a pesquisadora calcula que 49 PLs e PECs foram apresentadas no Brasil relacionadas à garantia de representação feminina entre 1991 e 2021.

Nesses 30 anos, apenas quatro projetos avançaram em sua tramitação, todos eles como parte de um pacote de medidas que reformaram as regras eleitorais do país.

As pequenas janelas de oportunidade para avançar com a representação feminina na política do Brasil também foram observadas nas medidas judiciais. Para as eleições de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a doação de empresas para campanhas eleitorais. A medida culminou com a criação de um fundo de financiamento público e aí se deu uma oportunidade para garantir que campanhas de candidatas fossem abastecidas com recursos.

“Quando o fundo especial de campanhas é criado, as pessoas que estavam sempre dizendo: ‘olha, a gente vai precisar de recursos para as mulheres para sermos competitivas’, percebem uma brecha para garantir que isso aconteça. O institutional layering, ou seja, esse diferente arranjo institucional através da criação do fundo especial de campanha gera uma nova oportunidade de reserva de financiamento de campanha para as mulheres, que antes disso seria mais difícil de instituir, justamente por não ter um fundo público. Esse, de fato, é um é um momento que que traz a discussão para o outro patamar”, analisa.

Em maio de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral decide por unanimidade que a cota de 30% de mulheres nas listas de candidatos se estende também ao destino dos recursos dos fundos partidários e do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC). A decisão foi considerada crucial para o aumento da representação feminina no Legislativo.

Avanços na Justiça

No contexto de um Legislativo corporativista e refratário à perda de um espaço historicamente dominado por homens, as decisões judiciais representaram um avanço significativo para as medidas de participação feminina nas eleições. O papel do TSE e do STF nessa história, no entanto, só foi possível com a existência de uma legislação que servisse de base para as decisões dos magistrados.

“É importante que a gente estabeleça quem tem os méritos. O judiciário reage a algo, portanto, as leis de cotas precisavam existir, serem aprovadas a partir do legislativo para que o judiciário pudesse interpretá-las e tomar decisões em cima disso. Foi importante sim o Legislativo adotar essas cotas, mesmo que cotas com problemas, com brechas, para que essas cotas, elas fossem sendo fortalecidas com o tempo”, destaca Malu Gatto.

Entre as alterações feitas no Legislativo fundamentais para que o Judiciário pudesse atuar para garantir a representação feminina nas urnas aconteceu na minirreforma eleitoral de 2009. Na ocasião, o termo ‘reservar’ foi substituído por ‘preencher’ ao tratar sobre os 30% destinados às candidatas. Desta maneira, a Justiça pôde punir partidos e coligações que não cumpriam com o lançamento efetivo das campanhas.

Avanço lento, mas constante

Desde a redemocratização, o percentual de mulheres ocupantes das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados nunca superou a marca dos 20%. A comparação da representação na última eleição com o pleito de 1990, porém mostra que a taxa de deputadas foi triplicada.

Até 2014, o percentual de deputadas na Câmara nunca superou a marca de 10%. O número máximo foi atingido justamente no pleito daquele ano, quando 51 mulheres foram eleitas, 9,9% da Casa.

O número aumentou significativamente em 2018, quando 77 mulheres foram eleitas e seguiu a toada em 2022, com o sucesso eleitoral de 91 candidatas, 15% e 17,7% da Câmara, respectivamente.

A perspectiva de um aumento lento, mas constante, foi debatida no Congresso neste ano quando um projeto de lei complementar (PLP) sugeria a determinação de uma cota de vagas de forma a reservar 20% das cadeiras para mulheres. A medida também retiraria a exigência de 30% de mulheres na lista de candidatos.

A medida foi entendida como um risco à participação feminina por criar um teto de participação nos 20%, percentual já quase alcançado atualmente. O receio de parlamentares e debatedores presentes nas audiências realizadas no Congresso era de que o projeto freie o avanço na participação e reduza o investimento dos partidos nas campanhas de mulheres, já que sua participação estaria garantida.

Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), as mulheres ocupam 15 das 77 cadeiras, 19,4% da Casa. Na Câmara Municipal de Belo Horizonte, 12 dos 41 postos de vereador são ocupados por mulheres, 29,3% das vagas.

Líder da bancada feminina no Senado recorda trajetória

Em julho deste ano, a senadora Professora Dorinha (União Brasil-TO) assumiu a liderança da bancada feminina do Senado lamentando a discrepância entre a representação de mulheres no Congresso e a divisão virtualmente paritária de gêneros na população brasileira.

Em entrevista à Itatiaia, a senadora recordou que a aplicação das cotas de gênero nas primeiras eleições em que a medida vigorou era falha e de difícil aplicação. Ela observa ainda que, com a punição a partidos que não cumpriam as medidas, houve sucesso na tentativa de aumentar a representação feminina no Legislativo.

“A primeira abordagem de cotas não gerava consequências, então era comum os partidos indicarem mulheres que eram esposas de candidatos, mães de candidatos. Isso mostra que era só uma um performance superficial. [...] havia as candidaturas, mas não viabilidade. Só com o processo de melhoria da legislação, da educação e da punição, somada ao financiamento garantido de campanha, passamos a ter a mudança. Basta ver os números tanto da Câmara, como do Senado”, destacou.

Com 16 integrantes, a bancada feminina liderada por Dorinha é a maior da história do Senado. O número, no entanto, ainda está distante da paridade e representa pouco menos de 20% das 81 cadeiras da Casa.

Para a líder da bancada feminina, é necessário instituir as cotas de vagas nos parlamentos para garantir mais participação de mulheres no Legislativo. Ela cita que em seu estado, bem como em Alagoas, Amazonas e na Paraíba, nenhuma deputada federal foi eleita e expande a discussão para os outros poderes.

“Não é só Tocantins, outros três estados não têm nenhuma deputada. Isso vai continuar acontecendo aqui, nas assembleias estaduais e nas câmaras municipais se nós não assegurarmos as cotas de cadeira. Sem cadeira efetiva, a gente não tem como garantir a representação. E aí não é só na política. No TCU (Tribunal de Contas da União) não tem nenhuma mulher, no STF (Supremo Tribunal Federal), só tem a Cármen Lúcia. Isso tudo porque não há uma garantia de representação”, defendeu.

A senadora concluiu dizendo que a bancada feminina do Senado vai atuar para que os 30% dos recursos eleitorais reservados para as candidatas sejam geridos por mulheres dentro dos partidos.

A parlamentar destaca que, dentro das legendas, a gestão da verba é feita de uma maneira que não garante o acesso de todas as postulantes, com favorecimento para as campanhas consideradas mais viáveis e uma distribuição desigual no território nacional. Essa realidade dificulta o acesso de novas figuras femininas no jogo político.

“É uma ação das bancadas femininas defender que os recursos que devem ser aplicados para as mulheres, sejam geridos pelas mulheres. Hoje nós não temos essa transparência e muito menos a garantia. Mesmo garantindo 30% do financiamento, não há uma certeza de que todas as mulheres receberão recursos, porque o partido pensa na viabilidade das candidaturas. E ele pode cumprir as cotas nacionalmente, nas candidaturas mais viáveis e muitas vezes daquelas que já estão no processo político”, concluiu.

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Repórter de política da Itatiaia, é jornalista formado pela UFMG com graduação também em Relações Públicas. Foi repórter de cidades no Hoje em Dia. No jornal Estado de Minas, trabalhou na editoria de Política com contribuições para a coluna do caderno e para o suplemento de literatura.