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Alisson Moraes | PEC da Blindagem: a força das ruas e o papel republicano do Senado

PEC não foi derrubada por acaso: foi uma combinação virtuosíssima de muita pressão social e autocontenção republicana

Manifestantes saíram às ruas no último domingo (21) em Brasília

A PEC da Blindagem caiu. A medida, essência, perseguia três objetivos: impedir o afastamento judicial de parlamentares sem aval prévio do Legislativo; restringir a aplicação de medidas cautelares a congressistas (como prisão preventiva, tornozeleira eletrônica ou bloqueio de redes sociais); e reforçar a leitura de que a prisão só poderia ocorrer em flagrante de crime inafiançável, deixando à própria Casa a decisão sobre mantê-la ou não. O apelido pegou: “blindagem”, isso porque, no fundo, se tratava de um escudo corporativo contra o controle judicial e social.

A Proposta de Emenda Constitucional, todavia, não foi derrubada por acaso. Foi uma combinação virtuosíssima de muita pressão social e autocontenção republicana. As ruas falaram alto no domingo; o Senado respondeu com firmeza na quarta; e a presidência da Casa arquivou a desonrosa proposta em seguida. Resultado: a democracia voltou a respirar melhor, por grande mérito de cidadãs e cidadãos vigilantes e de um Senado que, desta vez, exerceu muito bem o seu papel.

O problema não era só jurídico, mas sobretudo ético e político. A PEC deslocava o gatilho do processo penal para dentro da corporação ao estabelecer filtros entre pares, com parlamentares decidindo a sorte dos próprios colegas, inclusive por voto secreto, e violava princípios republicanos, em especial o da publicidade. Garantia é regra geral que se aplica a toda a cidadania; prerrogativa funcional é exceção raríssima e só se justifica para proteger a função pública, nunca para blindar pessoas contra a vigilância da sociedade. A lei não pode ser elástica para quem a escreve e rígida para quem a cumpre. A reação das ruas veio justamente desse descompasso moral: o país percebeu que não se tratava de prerrogativas, mas de autoproteção, em bom português, blindagem.

O Senado corrigiu a rota. A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) rejeitou por unanimidade a proposta; o relator, Alessandro Vieira, pediu a rejeição total da PEC e qualificou o texto como inconstitucional e perigoso; o presidente da CCJ, Otto Alencar, conduziu a decisão sem ambiguidades; e, na sequência, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, arquivou a matéria com amparo regimental. Enquanto a Câmara dos Deputados ensaiou blindar os seus, o Senado preferiu proteger o interesse público.

O artigo 53 da Constituição já resguarda a independência do Parlamento no que importa, isto é, palavra, opinião e voto. Não precisa de reforço ad hoc. Submeter Ministério Público e Judiciário a filtros políticos e secretos inverte absurdamente a lógica da separação de poderes e colide com os princípios da moralidade e da publicidade, imortalizados no artigo 37 da Constituição Federal. Em vez de fortalecer garantias, a PEC corroía a já combalida confiança da sociedade nas instituições públicas.

A discussão sobre “para que serve o Senado” volta e meia reaparece, e a melhor resposta está nos fatos desta semana. Num país continental e desigual, o bicameralismo é esteio de estabilidade: uma Casa revisora, com mandatos mais longos e renovação por terços, alonga o tempo da política, equaliza vozes regionais e submete o impulso ao crivo da responsabilidade. Ela funciona como freio de arroubos e como correção de rota quando a maré majoritária se confunde com autoproteção. Desta vez, o Senado cumpriu exemplarmente essa função.

Não se pode, contudo, diminuir a importância da Câmara, que capta o pulso das bases e do país real; mas ao aprovar essa blindagem, errou de direção e se afastou do sentimento público. É precisamente para esses desvios que existe o bicameralismo: equilibrar forças, impedir que maiorias eventuais convertam privilégios em norma e, quando uma Casa falha, exigir contenção da outra. Neste caso, o Senado ouviu as ruas, agiu e respondeu à altura. É assim que a democracia funciona em boa forma: mobilização social legítima, instituições responsivas e freios e contrapesos operando para proteger o interesse público.

Rui Barbosa, nosso grande tribuno da República e senador, resumiu o espírito parlamentar com precisão eloquente: “A salvaguarda do país são as instituições parlamentares, de que o Senado é parte necessária, mas parte apenas.” O Senado não é poder absoluto, tampouco mero ornamento no belo edifício de cúpula abobadada projetado por Oscar Niemeyer: é um dos pilares essenciais de um arranjo democrático que só se sustenta com transparência, crítica e contenção mútua.

Democracia também se constrói impedindo retrocessos. Quando povo e Senado se encontram na defesa de princípios, a República se fortalece. A política não é fortaleza para poucos, é serviço público para todos.

A democracia é também um inesgotável processo de aprendizagem. Cada retrocesso evitado, cada blindagem frustrada, ensina que a República só avança de verdade quando o poder público e a sociedade caminham juntos. O Brasil precisa deste exercício constante: transformar a indignação em lição cívica e a reação em passo adiante. E, de uma vez por todas, que os detentores de cargos públicos nunca se esqueçam: política não é reduto de castas; é serviço público em favor da emancipação, da dignidade humana e da justiça social. Para todos.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.