Enéias Xavier | O olhar dos outros

Humor machadiano usa do instrumento mais importante ao tratar da condição humana, a ironia

O escritor brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839 - 1908)

Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista.

O romance Quincas Borba, de 1890, organizado em 201 capítulos curtos, não intitulados, permite-nos perceber facilmente o uso do instrumento mais importante do humor machadiano ao tratar da condição humana, a ironia. A história começa com os últimos dias de vida de Quinas Borba, quando já se encontrava de cara magra, olhar febril, próximo aos subúrbios da morte, “para onde caminhava a passo lento, mas seguro”. Rubião, personagem central, a tudo assistia, sendo a única pessoa com quem o moribundo mantinha certo afeto, já que os parentes eram pré-mortos, sendo o último um tio que lhe legou um “bom par de contos de réis”, e os demais conhecidos Rubião lhes arredou a todos.

Ao cabo de algumas semanas, Rubião, ao receber os jornais do costume, deu-se com uma notícia que mudaria completamente sua vida, a notícia do falecimento do Sr. Joaquim Borba dos Santos, deixando-lhe muitos bens e um testamento feito e registrado. Feitas as diligências judiciais à abertura do inventário, eis a novidade: Rubião ficava por universal herdeiro do falecido, o qual lhe deixara muitos, muitos bens, como casas, apólices, ações, escravos, etc. Entretanto, com uma única condição, a de guardar o herdeiro consigo o seu pobre cachorro, também chamado Quincas Borba.

Passados o inventário, a estrada de ferro e alguns meses, Rubião, até então professor em Barbacena (província/pobreza), “ofício em que ia já cansado”, chega ao Rio de Janeiro (capital/riqueza), onde em pouco tempo já era totalmente outro. Lá, convive com o casal Palha e Sofia, dotados do faro das situações e que muito bem representam a sociedade burguesa movida por interesses e dinheiro. Plasmado num desejo de reconhecimento e ascensão social, o personagem mergulha numa incessante necessidade de reconhecimento que o leva a novos costumes. Passa a frequentar salões nobres e recepções luxuosas, ou seja, busca um meio que lhe garanta reconhecimento, status social, sempre com o auxílio do casal que o rodeava de favores, em especial a mulher, a qual tinha “os mais belos olhos do mundo”. Era tempo de uma nova vida, de encerrar o capítulo de suas raízes pobres e secas para dar início à época das “colchas de seda, que é melhor que trapos”:

“Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha [...], para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade”

Entregue à exploração dos “amigos”, ao mundo impiedoso dos interesses, em que o espírito paira sobre o abismo, ele acaba por ver sua fortuna evaporar-se, satisfazendo-se apenas com a suposição de ser amado. Com a rápida e voraz falência, todos os bajuladores o abandonam, restando-lhe a loucura e o desejo de retornar às suas origens, à sua terra natal:

“A meia rua, acudiu à memória do Rubião a farmácia, voltou para trás, subindo contra o vento, que lhe dava de cara; mas ao fim de vinte passos, varreu-se-lhe a ideia da cabeça; adeus, farmácia! Adeus pouso! Já se não lembrava do motivo que o fizera mudar de rumo, e desceu outra vez, e o cão atrás, sem entender nem fugir, um e outro alagados, confusos, ao som da trovoada rija e contínua”

Ao final, ele que tanto se preocupava com a opinião pública, enlouquece para se ver poupado do destino, do olhar dos outros, pois julgando-se imperador a glória permaneceria. Portanto, a liberdade de Rubião só é encontrada na insanidade, tamanha a necessidade de aceitação social. Finalmente, entregue à loucura que o poupara da derradeira consciência de seu declíno, ele morre. Em seus últimos e desolados momentos, seu único amparo era o cão Quincas Borba, a última peça da herança que ainda lhe restava. No entanto, para o fiel animal, a morte não significava o fim, mas sim a inexplicável ausência de Rubião, o que lhe fez fugir desvairados pelas ruas, em busca de seu dono e amanhecer morto na rua, três dias depois. Machado de Assis encerra o romance reiterando a nossa insignificância diante do universo, o qual é indiferente às dores e alegrias humanas, o que, subliminarmente, também nos transmite a ideia de viver a vida sem nos preocuparmos em demasia com o olhar alheio:

Eia! chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.

Veja o leitor como o romance evidencia a nossa necessidade de aceitação pelo outro, como uma espécie de combustível de nossa vaidade que, ao cabo, se torna cárcere. A certa altura do livro, quando Rubião já se imaginava possuidor da admiração de todos, o narrador intervém com fina ironia: “Rubião sentiu-se grande… tão grande que mal cabia dentro de si”. É exatamente na ilusão desse transbordamento que começa sua ruína. A sociedade que, até então, o aplaudia discretamente, imediatamente o empurra às sombras.

Essa ideia tem muita aplicação no mundo jurídico, em que o olhar dos outros é máquina de moer almas, onde muitas vezes um simples elogio nos faz lamber o espelho. Há o profissional que escreve petições imensas para impressionar o suposto leitor. O advogado que transforma a audiência num espaço de espetáculo. O magistrado que abusa de expressões incomuns. O escritor obsessivo para ser citado nas decisões judiciais. O apaixonado por títulos, comendas e medalhas. A banca acadêmica em que o examinador transforma a prova em um monólogo. O concurso público em que o examinador busca a todo custo reprovar os candidatos para se ver único com habilidades para o cargo almejado. E o pior, o desejo incessante de ocupar os cargos para ser reconhecido. Tudo isso é típico de muitas profissões, mas em particular do Direito, em que as pupilas alheias latejam muito.

No fim das contas, todo esse teatro de vaidades nos corredores da Justiça, o mesmo que prendeu Rubião nos caprichos da Corte, é apenas uma forma de esconder o medo. O medo de ser aceito, de demonstrar nossas fragilidades, fracassos e vulnerabilidades, como se não as tivéssemos todos. No instante em que buscamos menos olhares alheios, é que a Justiça se inclina para o humano.

O mineiro Carlos Drummond de Andrade, em “Eu etiqueta”, muito bem tratou da perda de nossa pessoalidade, da nossa necessidade de ser reconhecido pelos símbolos e não pela essência. O poema começa com o eu-lírico percebendo que suas roupas são qualificadas pelo status das marcas, ou seja, pelo olhar do outro: “Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho.” Lá pelas tantas, ele diz: “Estou, estou na moda./ É doce estar na moda, ainda que a moda/ seja negar minha identidade”. Ao final, o poeta conclui pela perda da identidade, numa transformação do homem em coisa, quase numa pessoa jurídica, sem “gosto e capacidade de escolher":

Por me ostentar assim, tão orgulhoso/ de ser não eu, mas artigo industrial,/ peço que meu nome retifiquem./ Já não me convém o título de homem./ Meu nome novo é coisa./ Eu sou a coisa, coisamente.

Ops. Caro leitor, com a aproximação do feriado da Consciência Negra, é bom lembrar que Machado de Assis era negro, em um mundo que o queria branco. Após a sua morte, passaram a tratá-lo como branco, inclusive em sua certidão de óbito, oposta à de nascimento. Quem sabe na próxima coluna, volto ao tema...

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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