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Enéias Xavier | Que cousa é o mundo?

Confundimos o ruído com a sabedoria, a informação com o conhecimento, num processo de infantilização em massa, em que tudo é simplificado

Que cousa é o mundo?

“- Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

- O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.”

Na semana do estudante, me lembrei do conto machadiano “Ideias de Canário”, publicado em 1895, na Gazeta de Notícias. Nele, Macedo, narrador-personagem, indo por uma rua, adentra uma loja de belchior, “escura”, “atulhada das coisas velhas”, onde o dono do negócio cochilava ao fundo. Quando já ia a sair, ele vê uma gaiola velha pendurada à porta, onde dentro pulava um animado e alegre canário capaz de dar vida e mocidade àquele lugar. Sentindo-se indignado pelo destino do animal, ele murmura baixinho sobre quem seria o dono execrável do pássaro que o deixou num lugar triste e sombrio como aquele. Ao ouvi-lo, surpreendentemente o animal trila que não tem dono, ao contrário, era ele o senhor e proprietário de tudo; já o homem que cochilava ao fundo era seu empregado, pois que lhe servia diariamente, inclusive dando-lhe água e comida com regularidade. Pasmado com a resposta, Macedo questiona ao canário se ele não tinha saudades da liberdade, do céu com seu espaço azul e infinito, ao que o animal lhe responde: “que quer dizer espaço azul e infinito?”. Nesse instante, o homem lhe faz uma interessante indagação:

“- Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

- O mundo - redarguiu o canário com certo ar de professor -, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.”

A conversa desperta tamanho interesse em Macedo que ele acaba por comprar o animal. Feito o negócio, ele coloca o pássaro na varanda de sua casa, numa “gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco”, “donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul”. Três semanas depois, o homem pede ao canário que repita a definição do mundo:

- “O mundo - respondeu ele - é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.”

Encantado, Macedo passa a se dedicar integralmente ao pássaro, afastando-se dos amigos e parentes, até que, num dia, não mais que de repente, o canário, estando o criado a tratá-lo, foge da gaiola. Padecido, Macedo o procura por toda a parte até que, tempos depois, ao visitar um amigo num bosque, ouve trilar, em meios à natureza, num bosque, a seguinte pergunta:

“- Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?”

“Era o canário; estava no galho de uma árvore”, num espaço amplo, sem gaiolas, onde podia voar livremente, apreciando o sol, o céu azul. O homem, então, pede-lhe com ternura para continuar a conversação, indagando-lhe novamente sobre o que é o mundo e se ele seria mesmo “composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.”:

- Que jardim? Que repuxo?

- O mundo, meu querido.

- Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo - concluiu solenemente - é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.”

Ah, caro leitor, quanta atualidade há neste conto do Bruxo do Cosme Velho. Na atual quadra da história, enquanto festejamos a civilização digital, armados de telas, tais como gaiolas luminosas e interativas, estamos presos numa visão de mundo limitada e parcial, eis a epidemia silenciosa da qual fazemos parte. Veja o panteão da modernidade, as redes sociais. Há ali o influencer que fala de tudo sem conhecer nada; o político que reduz questões complexas e problemas históricos a bordões simplórios; o comentarista instantâneo que, ao se deparar com o título da matéria, é capaz de formar juízo de valor; o justiceiro digital que se dedica ao linchamento público antes de qualquer julgamento pelo Poder Judiciário; o leitor apressado que vive informado pelos resumos, mas jamais lê a matéria por inteiro; o seguidor obediente que repete cegamente o dito por seus ídolos; o médico que examina por sintomas padronizados, sem olhar o corpo do paciente; o professor de direito robotizado que ensina por jurisprudência e resume tudo a slides de 180 caracteres; o jornalista apressado que publica antes de confirmar a informação; o economista de palpite com suas fórmulas mágicas para todos os gostos; e por aí vai o excesso de opiniões e a escassez de conhecimento, como se a vida coubesse em nossas telas – tal qual o canário de Machado de Assis que compreende o mundo sempre a partir da gaiola (hoje interativa e digital). Assim, confundimos o ruído com a sabedoria, a informação com o conhecimento, num processo de infantilização em massa, em que tudo é simplificado. Presos às nossas gaiolas, acreditamos extrair a essência das coisas em vídeos curtos, quando não pelos coaches (já falamos muito deles, mas eles insistem a nos rodear). Presos às nossas gaiolas, caminhamos rumo à desinformação, como se tudo fosse reduzido ao que vemos nas telas, como cegos hiperconectados. E com um agravante: buscamos quase sempre um viés confirmatório, num autoengano organizado, em que não queremos a verdade, mas a confirmação que nos traz a ilusão da certeza. Ao fim e ao cabo, o que menos importa é a profundidade, o estudo verdadeiro, a leitura profunda e verticalizada, mas o barulho, a capacidade de chamar a atenção, de chocar, pouco importando a ciência, a pesquisa e o estudo verticalizado.

Porém há uma fresta capaz de abrir as portas dessas gaiolas invisíveis que nos aprisionam: A literatura. Talvez ela seja a única forma de visitar outros céus, ouvir vozes que não as nossas, embora exija calma, pois não entrega respostas rápidas, simples e, muito menos, busca nos agradar. Através da leitura, habitamos consciências alheias, capazes de nos provocar a inquietação necessária onde habita o espírito livre, alargando os horizontes da percepção.

Clarice Lispector, em Felicidade Clandestina (1971), traz uma das mais simbólicas celebrações da leitura. No texto, ela recorda sua infância e o desejo quase febril de ler livros que uma colega má e rica se negava a lhe emprestar. A colega “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. Entretanto, pouco aproveitava e se negava a compartilhar os livros do pai. Até que um dia, Clarice obtém, da mãe de sua colega, um livro, o qual lhe trouxe essa coisa meio clandestina, chamada felicidade:

- “A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”.

É com esse mistério de Clarice que termino a nossa prosa de hoje. Ele é um incentivo a sair do poleiro da nossa própria opinião, da simplificação das ideias, do mundo fácil em que nos limitamos a ver de dentro de nossas gaiolas, numa ilusão de liberdade herdada do canário machadiano que, ao final do conto, indaga a Macedo se há mesmo lojas de belchior.

Ops. Há exatos 50 anos, num 15 de outubro como hoje, dia do Professor, Ivan Lessa publicou, no jornal Última Hora, a crônica “Ao Professor, com pêsames”. O texto fala da crise do conhecimento e da desvalorização do Professor. Infelizmente o texto envelheceu pouco. Aliás, o diagnóstico agravou-se. Quem nos ensina a pensar é considerado dispensável – basta ver os salários, sobretudo na Educação Básica. A profissão encarregada de formar todas as outras é uma das menos remuneradas no país. E nós, pais, continuamos com o discurso eloquente: “A educação é a base de tudo”. Entretanto, basta uma paralisação reivindicando melhores salários que estamos lá, cobrando o retorno imediato às aulas. O nosso desprezo pelo saber se dá pela conivência social. Eis a nossa hipocrisia.

Ops. Como domingo foi dia das crianças, permita-me, caro leitor, partilhar um pouco de José Saramago:

- Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas./ Sairei, de mão dada, com essa criança que fui./ Tentei não fazer nada na vida que envergonhasse a criança que fui./ Em meio ao agitado caleidoscópio dos dias e das horas atuais, quem ainda encontra tempo para pensar na criança que um dia foi?

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.