Enéias Xavier | Obediência à autoridade

‘A essência da obediência consiste no fato de que uma pessoa se veja como o instrumento de realização dos desejos de outra (...)’

Obediência à autoridade

Caro leitor,

Na década de 1970, Stanley Milgram, professor na Universidade de Yale, realizou um interessante estudo publicado no livro “Obediência à autoridade”, envolvendo milhares de participantes. Nele, o autor demonstra que a obediência cega, sem questionamento, é intrínseca à humanidade, pois somos tendentes a obedecer, através do desafio ou da submissão, às ordens de outros homens. O estudo teve como propósito demonstrar porque, durante a 2ª Guerra Mundial, milhares de pessoas inocentes foram sistematicamente mortas por pessoas que cumpriam ordens sem qualquer reflexão. O estudo demonstrou que “a essência da obediência consiste no fato de que uma pessoa se veja como o instrumento de realização dos desejos de outra pessoa e, a partir daí, a primeira pessoa não se acha mais responsável por suas ações”. Para chegar a essa e a outras conclusões, Stanley realizou, aos montes, o seguinte experimento:

Uma pessoa, chamada de “aluno”, deveria decorar uma lista de pares de palavras. A cada erro cometido na repetição das palavras, eram-lhe infligidos choques elétricos, pois se encontrava amarrado a uma cadeira, tendo um eletrodo preso a seu punho. Conforme os erros se sucediam, a potência dos choques aumentava substancialmente (faixas de 15 a 450 volts), causando dor e agonia. Em uma sala ao lado ficava o controlador, que era o responsável por aplicar o teste, ou seja, a cada resposta errada, era ele quem aplicava o choque elétrico, agindo a mando de um pesquisador que cumpria a função de autoridade. O detalhe é que, na realidade, o “aluno” não recebia choque algum, pois os gemidos e gritos ouvidos pelo controlador - o único que não tinha essa informação – eram reproduções de sons. O objetivo do experimento era ver até que ponto o controlador permanecia cumprindo a ordem de infligir, progressivamente, dor a uma vítima que protestava a cada choque. Esse experimento foi reproduzido com inúmeras pessoas ordinárias e o resultado foi substancialmente parecido.

Ao final, Milgran concluiu que o sofrimento manifestado pelo “aluno” pressionava o controlador a parar. Porém, a confiança em quem passava as ordens instava-o a progredir cegamente. Aliás, no experimento era frequente os participantes dizerem que “se dependesse de mim, eu não aplicaria choques no aluno”. Entretanto, a maioria foi até o fim, pressionando a última alavanca, em meio às suplicas dos “alunos”.

Daí foi possível concluir que pessoas tidas como razoáveis e decentes na vida cotidiana são facilmente seduzidas pela astúcia da autoridade, pelo controle de suas percepções e pela aceitação, sem críticas, de ordens. Logo, assim agindo, deixamos de pensar “por nós mesmos” para obedecer cegamente a ordens, ainda que violem nossos padrões morais. Abdicamos de nossa autonomia, na crença de que estamos diante de uma autoridade legítima, a qual pensará em nosso lugar e assumirá a responsabilidade pelos nossos atos. Trata-se de uma ideologia subordinante, em que somos convencidos de que estamos “servindo a um fim desejável”, em que o indivíduo “não sente nenhuma responsabilidade pelo conteúdo das ações que a autoridade prescreve”, bastando-lhe realizar adequadamente as tarefas repassadas por essa autoridade. Vê-se a substituição do juízo próprio pelo alheio, abdicando-se da autonomia, em prol de um ser considerado superior. Assim, a obediência torna-se virtude, ainda que forjada na subserviência.

Ah, leitor, Milgran nos mostra quão fácil a alma humana curva-se ao peso das ordens! Aqui está o drama do nosso quotidiano: gente honesta, pais de família que passam os domingos em oração, sujeitos que dão lugar às senhoras no bonde, aplicando choques fatais a mando de uma voz serena. Basta darmos uma rápida olhadela no nosso entorno para percebermos tal fenômeno no nosso dia a dia. Nas assembleias condominiais, outorgam-se procurações às cegas, decisões unânimes são tomadas sem que ninguém ouse contrariar. Nas instituições, o quadro se repete: eleições internas em que as votações nem sempre se pautam pela qualidade dos candidatos, mas na ideologia da subordinação. Em algumas Igrejas, não há espaço para contestação, pensar e questionar é quase pecado. Nos hospitais, o paciente engole medicamentos aos montes, sem saber se bálsamo ou veneno. Os médicos recomendam cirurgias muitas vezes evitáveis. Afinal, quem ousaria contestar o jaleco branco? E, claro, tudo isso atinge as redes sociais, o novo púlpito do século. Um influenciador determina e milhares o imitam. Não há necessidade de chicote, basta a promessa de pertencimento a uma multidão apta a marchar cegamente.

Como se tudo isso não fosse o suficiente, eis a ironia final: o nosso último Sete de Setembro. Algumas ruas, no dia da Independência do Brasil, não foram tingidas de verde e amarelo, mas de um estandarte vermelho, azul e branco de um país que, há dias, tenta nos tratar como colônia. Ora, que estranha independência é essa, em que, em plena festa de casamento, o noivo brinda o amante da noiva? O povo, seguindo fiel e cegamente seus “comandantes”, aplaudia seu próprio cativeiro, sem se dar conta, certo de que cumpria um dever, quando apenas repetia um erro de séculos.

“Só sei que foi assim”, diria Ariano Suassuna. O sete de setembro, que deveria homenagear a ruptura com tutelas estrangeiras, converteu-se, para uns (é bom que se diga), em submissão voluntária. Tudo graças à obediência cega, à incapacidade de questionar o óbvio, à eterna vocação para obedecer, exatamente como no experimento de Milgran. Eis a amarga lição: pensar, questionar, custa caro. A adesão incondicional é sempre tentadora.

Ops. Em recente julgamento no STF, a ministra Cármen Lúcia lembrou uma bela passagem literária, na obra “História de um Crime” (1877), de Victor Hugo, escrito no exílio, em que ele expõe o golpe de Napoleão III. O diálogo é marcante e reflete a ambiguidade moral de um golpe:

“__ Mas isso que você me propõe é um golpe de Estado.

__ Sem dúvida. Nós somos a minoria e seríamos a maioria. Nós somos uma função da Assembleia e agiríamos como se fôssemos a Assembleia inteira. Nós que condenamos a usurpação seríamos os usurpadores. Nós, os defensores da Constituição, afrontaríamos a Constituição. Nós, os homens da lei, violaríamos a lei.

— Golpe de Estado?

— Sim, mas um golpe de Estado para o bem.

__ Mal feito para o bem continua sendo mal.

— Mesmo quando ele tem sucesso?

— Principalmente quando ele tem sucesso. Porque aí ele se torna um exemplo. E vai se repetir.”

Ops2. O Brasil perdeu essa semana mais um gênio da música, Hermeto Pascoal (1936-2025): “Na época da ditadura, onde eu tocava no mundo, o público vinha no camarim me cumprimentar e agradecer – aliás, eu não, a música! A ditadura não resiste à música. Nada resiste à música. Nada, nada, nada.”

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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