Enéias Xavier | Natal: pequenos gestos que salvam o mundo

Natal é tempo de reflexão e de celebração do ‘homem comum’ que transforma o mundo

Reprodução do quadro São José Carpinteiro, de Georges de la Tour

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire (...)

O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.

O que agradece que na terra haja Stevenson.

O que prefere que os outros tenham razão.

Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo”

Cada vez mais me dou conta de que o Natal que me agrada é introspectivo, sem muitos presentes e com tempo para reflexões. Antes, provavelmente pela meninice ou pelo verdejar da juventude, gostava de muitas festas regadas a farturas; hoje, diminuí as comemorações e me tornei mais reflexivo. Não que seja um momento em que esquadrinho minha vida; no máximo, reflito sobre algo do passado. É um tempo não penitencial, mas contemplativo. É nesse recolhimento, entre leituras que permanecem, que alguns autores insistem em retornar, como o pequeno poema “Os Justos”, do escritor argentino Jorge Luis Borges, que nos faz matutar: afinal, quais pessoas estão salvando o mundo?

O escritor argentino responde com cenas mínimas, ordinárias, sem grandes heróis, homens públicos ou feitos gigantes. São “os justos” pessoas comuns que se entregam às pequenas tarefas, muitas vezes repetidas em silêncio e que, sem saber, salvam o mundo. Há o “homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire”, a nos preservar a vida biológica. Há o “que agradece que na terra haja música”, a nos lembrar da importância da arte. Há também o que “descobre com prazer uma etimologia”, a nos falar da importância da linguagem. Essas ações não mudam abruptamente o curso da história, não rendem medalhas, louros, reconhecimento público, mas mantêm o cotidiano de pé, como o “ceramista que premedita uma cor e uma forma” ou “uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto”. No dia a dia, são eles que cedem quando poderiam endurecer, que preferem que “os outros tenham razão”, que justificam um mal que lhes foi feito. É dessa justiça mínima que Borges nos recorda: a de que o mundo se sustenta graças aos gestos mínimos dessas pessoas que, sem se dar conta, o estão salvando.

Essa ideia encontra referência no Natal. Jesus Cristo, nascido em uma manjedoura, sem aplausos solenes, longe das pessoas importantes, convida-nos à celebração do “homem comum” aquele quase despercebido, mas que, na verdade, é quem transforma o mundo. O Cristo histórico não veio pelo poder nem pela hierarquia, mas pela vida comum, a nos lembrar pelo gesto mínimo a existência cotidiana. É justamente essa lógica que contrasta com o nosso tempo, em que o valor do homem se mede pelo saldo na conta, pelas fotos com carros de luxo e vinhos caros, e não pelas marcas que ele deixa na sociedade. Enquanto nos glorificamos pelos bens, títulos e honrarias, há um mundo de gente exercendo funções essenciais que fazem o mundo girar. E aqui o paradoxo se impõe: o que menos aparece é o que, muitas vezes, nos permite existir, como ombros invisíveis, longe do que é registrado em atas, votos, fotografias. São presenças longe do centro das cenas, mas que mantêm a nossa engrenagem em funcionamento.

O gari que recolhe o lixo deixado para trás, a ascensorista que nos conduz nas repartições públicas, o segurança que vigia sem ser notado, o jardineiro que cuida da natureza, a cozinheira que chegou antes de todos, o auxiliar de limpeza que apaga as marcas do dia anterior, o motorista do transporte coletivo responsável pela vida de centenas de pessoas diariamente, o porteiro que a tudo observa e por tudo zela, o trabalhador rural que prepara a terra antes que o alimento chegue às nossas casas. Há também uma justiça silenciosa para além dos ofícios, manifestada em um sorriso gratuito, na porta do elevador segurada por alguns segundos a mais, no pedido de licença, nos gestos simples, mas às vezes capazes de impedir o nosso dia de ruir. Todos esses nos sustentam anonimamente, sem nomes, rostos, identidades ou histórias. É ali, nessas funções e ações silenciosas, que o Menino Jesus também se revela, nessa humildade de quem serve sem ser visto, longe do espetáculo, mas na solidariedade que não espera retorno. O Natal é, portanto, um tempo propício para agradecer, com sinceridade, a essas pessoas presenças constantes que, dia a dia, golpe a golpe, estão salvando o mundo, sem sequer imaginar que o fazem.

O quadro que inaugura esta coluna, “São José Carpinteiro” (1642-1644), de Georges de La Tour, é uma referência a esta ideia. Nele, o Natal acontece em uma cena intimista, em que a vela, frágil, é sustentada pelo Menino Jesus que ilumina o ambiente enquanto o pai, José, trabalha silenciosa e pacientemente. Logo ele, que não fala nos Evangelhos, não realiza milagres, quase um anônimo. Talvez ele não soubesse que sustentaria o mundo, como tantos outros que nos rodeiam...

Ops. 1: Eugênio Bucci, há mais de trinta anos (01/10/1994), escreveu um divertido artigo para o “Estadão” sobre as Havaianas, com o título “As sandálias que são um exercício de democracia”. O texto, divertidíssimo e facilmente acessível pela internet, sutilmente nos instiga. É um objeto banal, íntimo, capaz de alcançar todas as classes sociais e que exige apenas... pés. Porém, tamanha a nossa loucura, virou sanha ideológica. Logo elas, que calçamos quando buscamos leveza e descontração! Eis um triste sinal do que nos transformamos e do que nos espera para o ano vindouro. Um aperitivo do texto: “Eu comecei este artigo dizendo que pouca coisa neste país é tão democrática quanto elas. Devo completar: nenhum calçado foi tão combativo. É isso o que penso quando olho o pezinho de Malu Mader na TV.”

Ops. 2: “O tempo é engraçado: enquanto o ano vai passando, é lento, lerdo, sofrido, mas vem o mês de dezembro e, quando a gente olha para trás, dá a impressão de que foi pouco mais que um minuto no relógio.” Raquel de Queiroz, uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX e a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, publicou belas crônicas, uma delas no fim de 1959, mês natalino. O texto começa pela chegada dos primeiros cartões de Boas Festas que, hoje, seriam substituídos pelas mensagens eletrônicas. As missivas são um claro sinal de que o Natal se avizinha e, com ele, um tempo de ajuste de contas, fazendo-nos “pensar logo nas omissões e nas faltas em que caímos — tudo que a amizade devia e não fez”, como os parabéns omitidos, as mensagens sem respostas e os convites não atendidos. O desfecho do texto é o que partilho e desejo aos leitores amigos, nesta semana natalina, com os quais falhei no decorrer do ano: “Contudo, se as mensagens vêm aparecendo – e justamente assinadas por pessoas a quem se está em dívida de cortesia – é sinal de que houve perdão. Não é costume, nas terras onde há reis, que se celebre o nascimento de um novo príncipe com uma anistia geral? Então, claro, no dia do nascimento deste príncipe maior que todos, é natural que os corações generosos ponham de lado os agravos e, magnanimamente, os perdoem; que os sinos de Natal são toques de alegria, não dobres a sugerir arrependimento e o bater de peito.

E, pois, de coração mais leve, a amigos e inimigos venho desejar muitas felicidades neste Natal.”

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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