“Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire (...)
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo”
Cada vez mais me dou conta de que o Natal que me agrada é introspectivo, sem muitos presentes e com tempo para reflexões. Antes, provavelmente pela meninice ou pelo verdejar da juventude, gostava de muitas festas regadas a farturas; hoje, diminuí as comemorações e me tornei mais reflexivo. Não que seja um momento em que esquadrinho minha vida; no máximo, reflito sobre algo do passado. É um tempo não penitencial, mas contemplativo. É nesse recolhimento, entre leituras que permanecem, que alguns autores insistem em retornar, como o pequeno poema “Os Justos”, do escritor argentino Jorge Luis Borges, que nos faz matutar: afinal, quais pessoas estão salvando o mundo?
O escritor argentino responde com cenas mínimas, ordinárias, sem grandes heróis, homens públicos ou feitos gigantes. São “os justos” — pessoas comuns que se entregam às pequenas tarefas, muitas vezes repetidas em silêncio e que, sem saber, salvam o mundo. Há o “homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire”, a nos preservar a vida biológica. Há o “que agradece que na terra haja música”, a nos lembrar da importância da arte. Há também o que “descobre com prazer uma etimologia”, a nos falar da importância da linguagem. Essas ações não mudam abruptamente o curso da história, não rendem medalhas, louros, reconhecimento público, mas mantêm o cotidiano de pé, como o “ceramista que premedita uma cor e uma forma” ou “uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto”. No dia a dia, são eles que cedem quando poderiam endurecer, que preferem que “os outros tenham razão”, que justificam um mal que lhes foi feito. É dessa justiça mínima que Borges nos recorda: a de que o mundo se sustenta graças aos gestos mínimos dessas pessoas que, sem se dar conta, o estão salvando.
Essa ideia encontra referência no Natal. Jesus Cristo, nascido em uma manjedoura, sem aplausos solenes, longe das pessoas importantes, convida-nos à celebração do “homem comum” — aquele quase despercebido, mas que, na verdade, é quem transforma o mundo. O Cristo histórico não veio pelo poder nem pela hierarquia, mas pela vida comum, a nos lembrar pelo gesto mínimo a existência cotidiana. É justamente essa lógica que contrasta com o nosso tempo, em que o valor do homem se mede pelo saldo na conta, pelas fotos com carros de luxo e vinhos caros, e não pelas marcas que ele deixa na sociedade. Enquanto nos glorificamos pelos bens, títulos e honrarias, há um mundo de gente exercendo funções essenciais que fazem o mundo girar. E aqui o paradoxo se impõe: o que menos aparece é o que, muitas vezes, nos permite existir, como ombros invisíveis, longe do que é registrado em atas, votos, fotografias. São presenças longe do centro das cenas, mas que mantêm a nossa engrenagem em funcionamento.
O gari que recolhe o lixo deixado para trás, a ascensorista que nos conduz nas repartições públicas, o segurança que vigia sem ser notado, o jardineiro que cuida da natureza, a cozinheira que chegou antes de todos, o auxiliar de limpeza que apaga as marcas do dia anterior, o motorista do transporte coletivo responsável pela vida de centenas de pessoas diariamente, o porteiro que a tudo observa e por tudo zela, o trabalhador rural que prepara a terra antes que o alimento chegue às nossas casas. Há também uma justiça silenciosa para além dos ofícios, manifestada em um sorriso gratuito, na porta do elevador segurada por alguns segundos a mais, no pedido de licença, nos gestos simples, mas às vezes capazes de impedir o nosso dia de ruir. Todos esses nos sustentam anonimamente, sem nomes, rostos, identidades ou histórias. É ali, nessas funções e ações silenciosas, que o Menino Jesus também se revela, nessa humildade de quem serve sem ser visto, longe do espetáculo, mas na solidariedade que não espera retorno. O Natal é, portanto, um tempo propício para agradecer, com sinceridade, a essas pessoas — presenças constantes que, dia a dia, golpe a golpe, estão salvando o mundo, sem sequer imaginar que o fazem.
O quadro que inaugura esta coluna, “São José Carpinteiro” (1642-1644), de Georges de La Tour, é uma referência a esta ideia. Nele, o Natal acontece em uma cena intimista, em que a vela, frágil, é sustentada pelo Menino Jesus que ilumina o ambiente enquanto o pai, José, trabalha silenciosa e pacientemente. Logo ele, que não fala nos Evangelhos, não realiza milagres, quase um anônimo. Talvez ele não soubesse que sustentaria o mundo, como tantos outros que nos rodeiam...
Ops. 1: Eugênio Bucci, há mais de trinta anos (01/10/1994), escreveu um divertido artigo para o “Estadão” sobre as Havaianas, com o título “As sandálias que são um exercício de democracia”. O texto, divertidíssimo e facilmente acessível pela internet, sutilmente nos instiga. É um objeto banal, íntimo, capaz de alcançar todas as classes sociais e que exige apenas... pés. Porém, tamanha a nossa loucura, virou sanha ideológica. Logo elas, que calçamos quando buscamos leveza e descontração! Eis um triste sinal do que nos transformamos e do que nos espera para o ano vindouro. Um aperitivo do texto: “Eu comecei este artigo dizendo que pouca coisa neste país é tão democrática quanto elas. Devo completar: nenhum calçado foi tão combativo. É isso o que penso quando olho o pezinho de Malu Mader na TV.”
Ops. 2: “O tempo é engraçado: enquanto o ano vai passando, é lento, lerdo, sofrido, mas vem o mês de dezembro e, quando a gente olha para trás, dá a impressão de que foi pouco mais que um minuto no relógio.” Raquel de Queiroz, uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX e a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, publicou belas crônicas, uma delas no fim de 1959, mês natalino. O texto começa pela chegada dos primeiros cartões de Boas Festas que, hoje, seriam substituídos pelas mensagens eletrônicas. As missivas são um claro sinal de que o Natal se avizinha e, com ele, um tempo de ajuste de contas, fazendo-nos “pensar logo nas omissões e nas faltas em que caímos — tudo que a amizade devia e não fez”, como os parabéns omitidos, as mensagens sem respostas e os convites não atendidos. O desfecho do texto é o que partilho e desejo aos leitores amigos, nesta semana natalina, com os quais falhei no decorrer do ano: “Contudo, se as mensagens vêm aparecendo – e justamente assinadas por pessoas a quem se está em dívida de cortesia – é sinal de que houve perdão. Não é costume, nas terras onde há reis, que se celebre o nascimento de um novo príncipe com uma anistia geral? Então, claro, no dia do nascimento deste príncipe maior que todos, é natural que os corações generosos ponham de lado os agravos e, magnanimamente, os perdoem; que os sinos de Natal são toques de alegria, não dobres a sugerir arrependimento e o bater de peito.
E, pois, de coração mais leve, a amigos e inimigos venho desejar muitas felicidades neste Natal.”