Enéias Xavier | Mágoas em litígio

Uma frase mal interpretada, e tudo se transforma em litígio. Basta a primeira fagulha de desconfiança para as teorias conspiratórias aflorarem

Uma frase mal interpretada pode se transformar em litígio

Jurei abatê-lo segundo as leis do duelo (ele ainda me deve esse tiro). Aleksandr Púchkin (1799-1937), considerado o pai da literatura russa moderna e um dos maiores poetas russos de todos os tempos, viveu no chamado Século de Ouro, dada a fertilidade literária. Curiosamente, faleceu precocemente, aos 37 anos, após ser ferido em um duelo. Em 1832, publicou o conto “O Tiro”, tendo como inspiração um episódio de sua vida.

No conto, alguns oficiais jantavam na casa de um ex-oficial, Silvio, homem enigmático e conhecido por suas habilidades com pistolas. Eles bebiam como de costume – ou seja, muitíssimo – e jogavam carteado. De repente, excitado pelo vinho, pelo jogo e pelos risos, um dos oficiais atirou um castiçal de cobre em direção a Silvio, que mal conseguiu se desviar. Não obstante o ataque, o protagonista evitou o confronto, influenciado por um episódio ocorrido seis anos antes, quando recebera uma bofetada de um inimigo ainda vivo.

Naquela ocasião, Silvio ainda servia no regimento, quando surgira por ali um jovem rico, ilustre, bem-sucedido com as mulheres e cuja convivência, da planície das conversações ordinárias aos anseios do coração, lhe despertava profundo ciúme. Um dia, para encurtar a história, ambos tiveram uma desavença daquelas que, à época, eram resolvidas em duelo.

No local marcado para o confronto, o opositor apareceu tranquilamente, segurando um quepe cheio de cerejas. Tirada a sorte, o primeiro tiro coube a ele, sempre o favorito da fortuna. Feita a pontaria, a bala trespassou o quepe de Silvio. Era então a sua vez, a vida do jovem finalmente em suas mãos:

— “Ele estava sob a mira da minha pistola, escolhendo dentro do quepe cerejas maduras e cuspindo fora os caroços, que chegavam até onde eu estava. Sua indiferença me enfureceu. O que adiantaria, pensei, privá-lo da vida, se ele próprio não lhe dá valor algum? Um pensamento perverso me veio à mente. Baixei a pistola”.

Desde então, apesar dos anos, da vida familiar e das obrigações domésticas, não houve um instante sequer em que Silvio não desejasse vingança, aguardando apenas o momento em que o jovem realmente valorizasse a própria existência. E um dia, esse dia chegou...

Ele recebeu uma carta anunciando que o jovem contrairia matrimônio, em Moscou, com uma moça encantadora:

— “Veremos se ele aceitará a morte antes do casamento com a mesma indiferença com que a esperou no episódio das cerejas!”

Silvio instalou-se em uma aldeia próxima, o que lhe permitiu acesso ao gabinete do agora conde. Ele era um homem repleto de pompa e circunstância. E assim, com todas as honras, recebeu seu ex-adversário em seu palácio. Silvio logo notou, entre os quadros suntuosos, os talheres de prata e o requinte das coisas finas, uma tela trespassada por uma bala: era a marca da ferida antiga do duelo juvenil que parecia latejar na memória da casa. O conde, que não o reconheceu, relatou-lhe o caso com vivo interesse. Após as primeiras formalidades, Silvio lhe indagou, com a voz já trêmula, se não o reconhecia. Diante da negativa, evidente sinal do tempo, a revelação aguou-lhe o gosto: “Silvio! Tenho direito a um tiro; venho para descarregar a minha pistola; estás pronto?”

Imediatamente a pistola saiu de seu bolso lateral, e os passos foram novamente medidos. Ao conde restava apenas contemplar o espetáculo na esperança de que o tiro fosse breve. Entretanto, Silvio teve uma ideia: propor um novo duelo, sugerindo, inclusive, que se lançasse a sorte outra vez para decidir quem atiraria primeiro. E, como se o destino tivesse predileções antigas, a fortuna voltou a sorrir ao conde. Puxado o gatilho, o estampido rompeu o silêncio apenas para se dissipar no vazio – dessa vez no ar, e não num quadro como na juventude. Agora, era a vez de Silvio. Porém, percebendo o sobressalto e o pavor da esposa de seu adversário, ele deixou cair a mão. Desarmado pela súbita clareza, decidiu não devolver a ofensa justamente no instante em que seus olhos se ofereciam ao espetáculo que por tantos anos esperara:

— “Estou satisfeito; vi o teu estado de confusão, o teu medo. Obriguei-te a atirar em mim, isso me basta. Vais lembrar-te de mim. Entrego-te à tua consciência”.

Depois disso, eles jamais cruzaram caminhos. Conta-se que Silvio morreu anos depois, em meio ao fragor de um combate, chefiando um destacamento com a mesma altivez que o acompanhara toda a vida, deixando para trás a lembrança de um homem cuja existência se moldara no orgulho e nas sombras de um passado do qual nunca conseguiu se desvencilhar.

Veja, caro leitor, para além das imagens da terra russa e de sua cultura, tão delicadamente entretecidas nos versos de Púchkin – mestre inaugural do realismo russo –, este conto nos revela uma face trágica de muitos de nós: o aprisionamento a instantes passados que formam feridas sempre abertas, que não se amortecem com o tempo. Silvio é a imagem de um homem preso a um instante que se solidifica, numa memória que se absolutiza, transformando pequenas ofensas, como a bofetada, em grandes batalhas, o que lhe impede de seguir em frente.

O mundo jurídico é um terreno fértil para esses fantasmas do passado, pois não é incomum o tempo pretérito se materializar nos fóruns, onde o processo, ao invés de instrumento de resolução, transforma-se em abrigo para ressentimentos, palco para disputas do que “ficou atravessado”. Nos inventários, por exemplo, muitas famílias se digladiam por mágoas da infância (o irmão que se julga preterido, o brinquedo quebrado, o almoço de domingo, a suposta preferência materna). Uma frase mal interpretada, e tudo se transforma em litígio. Basta a primeira fagulha de desconfiança para as teorias conspiratórias aflorarem (um “armou”, outro “escondeu”, outro “falou demais”), e assim cada um cria labirintos próprios, numa epopeia imaginária. O que se reparte são lembranças e palavras que nunca deveriam ser ditas. O parente, até então querido, logo se transforma em maestro de intrigas. Os bens são símbolos de um tempo que já não existe, mas que insiste em rodeá-los. São Silvios presos às pequenas bofetadas que, alimentando uma mágoa interna, se transformam em um permanente desejo de vingança. Ao fim e ao cabo, faz-se dos autos uma arqueologia afetiva, numa terapia coletiva malfeita. Nos divórcios, a situação se repete. O ponto de travamento não é a casa, mas quem começou a briga, a frase dita num contexto de nervos à flor da pele...

E as conciliações, tão corretamente incentivadas pelo CNJ e TJMG como instrumentos de pacificação social? Quantos não naufragam por uma questão mínima, irrelevante no contexto, presos a um orgulho pequeno de não ceder? A migalha se transforma em montanhas. O acordo, já redigido, despenca por um detalhe microscópico: uma cláusula com pedido de desculpas que ninguém lerá, a falta de um simples gesto de cordialidade, um simplório horário de visitas. No fundo, o objeto em disputa é muito mais a dignidade ferida, a vaidade tensionada, a não aceitação de perda alguma, essa sensação que tanto nos corrói. O bom senso passa à margem do problema. Conciliar se transforma em atestar que o outro “venceu”, quando tudo demonstra que ambos perderam, a começar pela saúde dissipada ineficazmente e pelo tempo que não volta. E tudo isso permeado por palavras de força: “questão de princípio”, “pela história da família”, “pela honra”, “por respeito”, e por aí vai. É por isso que o Direito muitas vezes não lida com fatos, mas com memórias, com aquilo que no coração humano insiste em não morrer. Como Silvio, muitos preferem carregar o peso inútil de uma suposta ofensa antiga que, se algum dia teve substância, no contexto da vida não merece sequer uma nota de rodapé. E a mesma cena se repete em um infindável número de processos, desde ações possessórias, ações penais privadas, conflitos societários, indenizatórias; enfim, na lide que se perpetua nos corações e não nos autos. E, claro, também nas disputas Institucionais, onde o ressentimento veste toga.

Como dezembro é o mês em que os cristãos testemunham o milagre, talvez seja também o tempo propício para fazermos as pazes com o próprio passado. E, se não houver valor cristão que dê conta dessa tarefa, talvez o desfecho do conto sussurre outra revelação. Silvio, que passou uma vida preso à fogueira fria da vingança, ao alcançar o instante tão aguardado, deparou-se apenas com o vazio: o “inimigo” não passou de um espectro, um reflexo deformado de si mesmo. A antiga ameaça, que durante anos lhe pareceu gigante, era um simples fantasma nascido do orgulho e da vaidade que alimentou por anos, um engano ampliado pela teimosia de sua alma. Eis a singela reflexão natalina, caro leitor.

Ops. Nesta semana, o calendário guarda um encanto raro: celebra-se, numa mesma semana, o nascimento (10/12/1920) e a morte (09/12/1977) daquela que “veio de um mistério, partiu para outro” (Drummond), Clarice Lispector. Na data de sua morte, Ferreira Gullar legou-nos este pequeno poema, como que a nos dizer da transitoriedade da vida. Enquanto a gastamos alimentando mágoas e fantasmas, a natureza segue adiante, como o tempo, indiferente às nossas feridas, aos nossos Silvios:

“Enquanto te enterravam no cemitério judeu do Caju (e o clarão de teu olhar soterrado resistindo ainda) o táxi corria comigo à borda da Lagoa na direção de Botafogo E as pedras e as nuvens e as árvores no vento mostravam alegremente que não dependem de nós”.

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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