Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico, como saudosa lembrança, estas memórias póstumas.
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, meu romance predileto, foi publicado em 1881 por Machado de Assis. O livro, desde a sua abertura, espelha a sociedade brasileira da época, com seus comportamentos ambivalentes e suas relações superficiais. A história gira em torno de um narrador pertencente à elite socioeconômica que, na condição de “defunto autor”, relata sua autobiografia. A narrativa acompanha a vida do personagem desde seu nascimento, em 1805, até 1869, quando falece de uma pneumonia que o vitimou. Trata-se de uma confissão produzida por alguém livre de qualquer amarra, afinal, estava morto:
- Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade!
Portanto, um autor com tamanha liberdade estava apto a tratar das mazelas sociais. No capítulo XI, “O menino é pai do homem”, por exemplo, o narrador descreve os primeiros anos de sua infância, quando recebeu a alcunha de “menino diabo”, tamanhas as suas traquinagens, a exemplo do dia em que atingiu a cabeça de uma escrava que lhe negara uma colher do doce de coco que estava fazendo. Em seguida, apresenta ao leitor o interessante personagem Prudêncio, um dos poucos escravos a serem nomeados na produção machadiana, pois eram seres invisíveis. Ele servia como cavalo de brincadeiras diárias para a criança:
- Punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou quando muito, um — “ai, Nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!”
Vê-se que Brás Cubas, com apenas 6 anos de idade, reproduzia no escravo os maus-tratos que presenciava em seu meio social, inclusive os praticados por seus pais, os quais tratavam os negros como bens, como coisas, sem dignidade humana. Diante de todo abuso cometido pelo filho, eles assistiam sem qualquer repreensão: “... meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! Brejeiro! ah! brejeiro...”
O personagem cresce tendo seu “cavalo” Prudêncio ao lado, mas sempre de forma invisível, salvo nos momentos em que lhe oferecia pancadas e açoites que lhe marcavam o couro. Após a morte de sua mãe, por exemplo, acabada a missa fúnebre de sétimo dia, Brás Cubas tomou posse de alguns bens – uma espingarda, livros, roupas, charutos e Prudêncio – e se instalou “sozinho” numa velha casa de sua propriedade. A presença do escravo, sempre ao seu lado, sequer era notada; era como um ser inanimado, cuja voz jamais pronunciava palavra alguma. Na verdade, era um criado-mudo que existia apenas para servir, semelhante ao móvel homônimo. A única exceção ocorreu no dia em que o serviçal rompeu o silêncio para informar ao “senhorzinho” que uma pessoa de seu conhecimento havia se mudado na véspera para uma casa próxima, a apenas duzentos passos dali. Foi sua única fala durante todo aquele período.
Anos depois, após o falecimento de seu pai, no capítulo “Herança” (XLVI), Prudêncio volta a ser lembrado, novamente exibindo todos os traços de mero objeto, pois era um bem a ser partilhado entre Brás Cubas e sua irmã Sabina. Sua irmã indaga sobre a divisão da herança e inclui na partilha os escravos Paulo e Prudêncio. Nesse instante, ela toma conhecimento de que o cativo já era livre:
— Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.
— O Prudêncio está livre.
— Livre?
— Há dois anos.
— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata?
Sabina recebeu a notícia com extrema surpresa, pois, além de representar um bem de bom valor, o ex-escravo continuava servindo à família, mesmo estando, em tese, livre. Divididos os bens, Prudêncio finalmente toma seu próprio rumo e apenas muitos capítulos depois reaparece no romance. E, agora, de forma bastante curiosa, não mais como escravo. No capítulo “O Vergalho” (LXVIII), Brás Cubas palmilhava pelas ruas da cidade quando viu uma aglomeração; “era um preto que vergalhava outro na praça”, o qual não se atrevia a fugir, limitando-se a pedir perdão: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!”. Entretanto, as súplicas eram em vão; aliás, apenas instigavam o açoitador a desferir novas e mais fortes vergalhadas, seguidas de um tratamento animalesco (— “Cala a boca, besta!”), como se o açoitado fosse um bicho.
Assustado com o tratamento dispensado ao açoitado, Brás Cubas parou e identificou quem empunhava o vergalho: nada menos que o antigo escravo que seu pai libertara antes de morrer, Prudêncio. Ao vê-lo, o agora senhor de escravos se deteve e pediu-lhe a bênção, instante em que Brás Cubas determinou que parasse o açoite: — “Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!”
Assim, Brás Cubas seguiu caminho, imerso em uma infinidade de reflexões, concluindo que aquela era a maneira de Prudêncio se livrar da dor sofrida, transmitindo a outrem os mesmos sofrimentos de que fora vítima:
- “Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”
Veja, caro leitor, como Machado denuncia a violência escravista. Prudêncio, cujo nome recomenda prudência, liberto, correu para adquirir um escravo, embora continuasse subserviente a seus antigos senhores. Todo esse gesto tinha como objetivo resgatar sua cidadania, o que o levava a repetir em público a violência física e simbólica que um dia recebera, buscando, com isso, angariar respeito e prestígio. A liberdade não era só de ir e vir, mas também de castigar e punir os que se encontravam no andar de baixo. No fundo, a punição em público era um meio de demonstrar aos quatro cantos a ascensão social. Já Brás Cubas, de origem branca e elitista, fez o gesto oposto. No seio familiar, privado, abusava dos escravos desde criança, tratando-os como animais. Em público, adotou postura oposta, numa manobra oportunista, quis granjear a simpatia do público ao exigir a cessação da violência, da qual ele próprio havia usado e abusado a vida inteira.
Interessante como um clássico pode permanecer atual. A escravidão no Brasil não foi abolida; apenas trocou o chicoteio físico pela falta de oportunidade social. As estruturas de cativeiro são por nós herdadas e reproduzidas, sem nos darmos conta, tal como fez Prudêncio – não um mero personagem, mas um espelho. Espelho de um país que carrega consigo as heranças da escravidão. Basta uma olhadela para o insistente elevador de serviço, a patrulha vigilante que alimenta a desconfiança pela cor da pele, a escola exclusiva, o clube social e a constante insistência em negar o racismo (“isso é mimimi”). Aliás, que o leitor faça a melhor comparação que lhe quadrar, espero que sem torcer o nariz, embora não custe lembrar que Prudêncio jurava não ter nada com isso.
Outro dia, vi um vídeo supostamente motivacional de um “novo-rico”, desses que se familiarizam com coaches e afins e passam o dia a postar seu sucesso nas redes sociais (vinhos, carros, elevadores em casa e toda essa “baranguice”). Nele, num ônibus apertado, calorento e sujo, um homem olha para um carro importado e diz que um dia estará ali. Ele não queria melhorar a condição do transporte público, mas apenas trocar de lugar com o outro. No fim das contas, era o velho dilema de Prudêncio, o qual todos nós, em alguma medida, carregamos, ainda que escondido num canto da alma. O melhor do chicote é ter-lhe o cabo à mão...
Superar esse dilema é o nosso desafio diário. Talvez seja isso que o Dia da Consciência Negra, rememorado em 20 de novembro — data que marca a morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares —, tem a nos dizer. É preciso vigiar essa tentação de ascender sem transformar, ainda mais no Direito, onde há tanto espaço para a implementação de mudanças sociais. Só assim saltaremos da velha engrenagem que levou Prudêncio a sonhar com o chicote que um dia o vergastou. Quem sabe, assim, cairá por terra a conclusão de Brás Cubas ao final da obra: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Ops. Jorge Aragão musicou o “dilema de Prudêncio” com a canção “Identidade”: Elevador é quase um templo/ Exemplo pra minar teu sono/ Sai desse compromisso/ Não vai no de serviço/ Se o social tem dono, não vai/ Quem cede a vez não quer vitória/ Somos herança da memória/ Temos a cor da noite/ Filhos de todo açoite/ Fato real de nossa história/ Se preto de alma branca pra você/ É o exemplo da dignidade/ Não nos ajuda, só nos faz sofrer/ Nem resgata nossa identidade