“E não gostavas de festa...
Ó velho, que festa grande hoje te faria a gente./ E teus filhos que não bebem e o que gosta de beber,/ em torno da mesa larga, largavam as tristes dietas,/ esqueciam seus fricotes, e tudo era farra honesta/ acabando em confidência.”
Caro leitor,
Com a aproximação do dia de finados, me lembrei do poema “A Mesa” (1951), de Carlos Drummond de Andrade. Nele, o filho comemora, postumamente, os 90 anos do pai com um grande jantar mineiro, em que toda a família, inclusive os falecidos, estão presentes. Tudo se passa ao entorno da mesa de jantar que, repleta, se torna maior do que a casa, tamanha a alegria do momento compartilhado. A comida - cheirosa, profunda - ocupa um lugar tão especial na celebração que dispensa até a necessidade do apetite, pois as gostosuras deixavam-se espostejar: “Nunca desdenhe o tutu. Vá lá mais um torresminho. E quanto ao peru? Farofa há de ser acompanhada de uma boa cachacinha, não desfazendo em cerveja, essa grande camarada.”
Nos versos que se sucedem, o poeta descreve o pai e os membros da família, todos vivos e alegres. Ele é descrito como aquela figura capaz de nos fitar com pesar, olhar com ira e, ao mesmo tempo, com doçura nos perdoar. Já os filhos são “uns marmanjos cinqüentões, calvos, vividos, usados”, mas que resguardavam no peito a alvura da juventude. Dentre eles, há, por exemplo, a irmã que se foi mais cedo que os outros, passando pelo filho mais velho, um tipo manso, sonso, “que não servia para padre” e que, ao envelhecer, torna-se quase um retrato do pai, tamanha a semelhança física, até o que se tornou doutor, “o bacharel da família”.
Como o poeta sabia das coisas, não lhe faltou a sagacidade das reais rodas dos que partilham do mesmo sobrenome, as quais muitas vezes terminam num quipropró danado, daí que tudo era feito de modo a evitar as conhecidas discussões familiares. Daquela vez a disforia cederia espaço à euforia.
O pai ali era o elo de transição entre as gerações, numa procissão de filhos, netos, alongando-se em bisnetos, todos perfilhados para lhe pedir a benção e comer do jantar.
O ambiente era de tamanha alegria que todos falavam de boca cheia, xingavam-se mutuamente, ao mesmo tempo em que riam, numa efusão de melhores sentimentos: “Oh que ceia mais celeste e que gozo mais do chão!”
A essa altura, o leitor há de se perguntar: e quem preparou todo aquele banquete? De quem era a mão invisível capaz de traçar todo aquele arabesco? Ora, a que, via de regra, é a que mais se sacrifica pela família. A mesa, na verdade, era ela: a mãe com sua “tarja de cabelos brancos”. A festa, pois, não era só de um, mas de dois, “reunidos numa aliança bem maior que o simples elo da terra”. E assim termina o poema, com o pai e a e mãe juntos na mesa de madeira, não no meio de nós, mas acima, num lugar sagrado a nos proteger:
“Estais acima de nós,/ acima deste jantar/ para o qual vos convocamos/ por muito — enfim — vos querermos/ e, amando, nos iludirmos/ junto da mesa/ vazia.”
É, caro leitor, quem de nós não gostaria de celebrar um aniversário que o tempo não nos permite, mas que fica nas nossas lembranças. O dia de finados, para além de chorar os mortos, é também momento de reconhecer a permanência, o que fica do outro em nós – gestos, palavras, ensinamentos, liturgias, encontros e patuscadas. O filho, no poema, é um exemplo desta presença na lembrança, pois não chora a morte dos afetos, mas reconstrói, põe a mesa imaginária. A morte deixa de ser fim para se tornar presença, memória e fábula íntima.
Já numa outra perspectiva, também bela, Rubem Braga, em “Despedida” (1967), fala de um partir de repente, no meio dessa confusão do viver, em que alguém se foi sem que houvesse tempo para a palavra final, em que a vida nos subtraiu o direito ao adeus. Ele diz dessa tristeza pela partida “no meio da confusão”, mas faz uma curiosa reflexão: “talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão”. A estas ocasiões, o poeta capixaba confessa que há um “indefinível remorso”, talvez pelo não dito, pelo que poderia ter sido, por não ter percebido que aquele seria o último encontro. Entretanto, o poeta reconhece que não adiantaria nada, sempre faltaria o que dizer, sentir e partilhar, pois a impotência das palavras sempre nos acompanha:
“Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.
A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.”.
Também neste poema, onde o adeus não coube no instante, deixando apenas o silêncio, a ausência se faz presença. A palavra não dita, jamais mudaria o inevitável. Entretanto, a lembrança festiva também se revela uma forma de permanência.
É isso que a literatura de Drummond e Braga tem a nos ensinar: ver o invisível, compreender que há algo que respira além da matéria, que a lembrança acesa não se dissolve com o tempo. Porque, em última instância, são as memórias afetivas que levamos da vida. Cada um a seu modo.
Gilberto Gil, ao celebrar a vida na ensolarada “Cores Vivas”, parece cantar essa continuidade da existência, em que, após tomar pé (viver o luto), é preciso retomar a profunda sensação de gozar desse bom viver, mergulhar no calor do sol, nesse cartão postal em cores vivas que a vida nos brindou. Tudo ao “sabor do mel, vigor do sal, cores da pena de pavão, cenas de uma vibração total”.
Ops. O leitor saberá me perdoar pelo esquecimento do Direito. O tema excedeu à capacidade das ciências jurídicas. É que ela é uma construção humana que, diante dos mistérios da vida, é ineficaz. Ela pode até definir a sucessão dos bens, partilhar as riquezas materiais, mas jamais responderá às saudades. A vida é maior que qualquer código, qualquer norma; por isso, não há lei ou sentença capaz de restituir as ausências, preencher a mesa. Há uma fronteira, onde só a arte e a literatura, pelos seus artistas – juristas da alma - alcançam: “A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gullar);
Ops. Aliás, esse tal Ferreira Gullar fez cada coisa... Por essas e outras permaneces tão vivo:
“Pode ser que de golpe/ ao abrires a janela para a esplêndida manhã/ te invada o temor:
“Um dia não mais estarei presente à festa da vida”/ Mas que pode a morte em face do céu azul?/ Do escândalo do verão?/ Teu coração,/ esse mínimo pulsar dentro da Via Láctea,/ em meio a tempestades solares,/ quando se deterá?
Não o sabes pois a natureza ama se ocultar./ E é melhor que não o saibas/ para que seja por mais tempo doce em teu rosto/ a brisa deste dia/ e continues a executar/ sem partitura/ a sinfonia do verão como parte que és/ dessa orquestra regida pelo sol.
(Ferreira Gullar, “Morrer no Rio de Janeiro” em Toda poesia)
Ops. E por falar em Gullar, morte e Rio de Janeiro: há que rejeitar-se sempre a normalização do absurdo.