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Enéias Xavier | Solidão

Nos meus anos mais jovens e vulneráveis, a solidão era uma assombração

‘Um fato marcou a minha vida para sempre: eu nasci!...’

“Um fato marcou a minha vida para sempre: eu nasci!... O resto foi uma mera sequência de acontecimentos, que já é passado.” (Luiz Colares)

Caro leitor,

eis que, essa semana, completei mais uma volta ao redor do sol, após escolher chegar ao mundo num sábado de primavera. Quero crer que, há 47 anos, à ocasião, a família e os amigos tenham assinado o ponto com festa e alegria, permeada de temperança, já que, a rigor, não eram permitidos excessos pagãos nas maternidades. Confesso que nunca assuntei sequer uma parte das testemunhas ainda vivas sobre a festança no momento em que abri ao mundo minha primeira luz dos olhos. É que nunca sabemos o que se oculta por trás das mentes humanas e esses acontecimentos, nascimentos, casamentos e mortes, geralmente são cercados de mistérios e arcanos, já que a alegoria é da natureza humana e buscar muitas informações pode gerar alguma frustração.

Só sei que eu, de lá, meti mãos à obra para - de alma leve - me jogar no bem-bom da vida, onde ri muito, bebi, cantei, dancei, amei, fiz amigos e algumas desavenças. Há de se tê-las também, porque dá medida ao nosso valor e, muitas vezes, é a nossa biografia mais fiel e da qual temos mais orgulho, uma verdadeira medalha. Agora, já transposta a estação fogosa da mocidade, entendo melhor a poesia de Mario Quintana, ao nos falar de quantas vezes, à procura da ventura, procedemos como o infeliz avozinho que “em vão, por toda parte, os óculos procura/tendo-os na ponta do nariz!”. É que, com o amadurecer, vamos aprendendo a beleza do essencial, inclusive a nos privar das falsas delícias e passamos a valorizar alguns momentos preciosos, como a solidão, status normalmente tão temido na juventude. É sobre ele que proseio hoje.

Nos meus anos mais jovens e vulneráveis, a solidão era uma assombração. O bom era cercar-se de gente, custasse o que custasse, estava eu sempre atrás de uma diversão apressada. Somente após o verdejar dos trinta, quando normalmente assentamos a poeira nos móveis da rotina, me dei conta dos prazeres da solidão e, com isso, dei uma guinada, dessas sem alarde, a começar por descobrir um novo frescor – a leitura literária.

A primeira consequência foi a libertação de certa clausura jurídica, pois bastante habituado à leitura de códigos e manuais, faltava-me a testemunha mais astuta, a literatura, a que melhor traduz a alma humana e que é capaz de ampliar a lente que as ciências jurídicas muitas vezes tendem a categorizar. A leitura dos grandes escritores, como um refúgio que o ruído dos manuais jurídicos não capta, me permitiu compreender melhor o outro e, consequentemente, suas luzes, sombras, misérias, vaidades e abismos, o que muito influenciou no meu exercício profissional. Obviamente, não tenho a pretensão de atingir a advertência do velho romano Terêncio, para quem nada do que é humano pode ser-me estranho, mas me desencastelar dos códigos, das muralhas das coletâneas de jurisprudências - que, por mais minuciosas, nunca captam o enigma humano com seus recônditos silêncios - foi libertador e me permitiu novas interpretações do Direito, mais a partir do humano.

Ah, caro leitor, o silêncio tem dessas coisas...

Aquilo que parece ausência é, na verdade, uma possibilidade de novas descobertas. Foi através da quietude – essa amiga tão ignorada e maltratada pela pressa moderna – que fui cooptado pela leitura e outros prazeres da solidão. Esse hiato de resguardo que o mundo tanto teme permitiu-me por ordem nos pensamentos, olhar-me no espelho, proteger lembranças; enfim, foi um grande cúmplice de mim mesmo, até me permitindo ouvir o que não queria.

Entre tantas vozes que partilham destas ideias, há alguns anos, fui apresentado à escrita de Rainer Maria Rilke, autor de “Cartas a um jovem poeta”, produzidas entre 1903 e 1908, em que ele transmite ao então jovem Franz Xaver Kappus parte de sua vivência. Logo no prefácio à edição brasileira, Cecília Meireles fala da importância da solidão, a qual assume, nas cartas, “um caráter de heroísmo e de magnificência – a ponto de dizer que o homem solitário pode preparar muitas coisas futuras porque as suas mãos erram menos”.

Nas cartas, o autor tcheco traz vários conselhos ao jovem escritor, dentre eles a importância de conhecer a nossa morada, a qual só é acessível em meio à quietude solitária, pois “é precisamente nas coisas mais profundas e importantes que estamos indizivelmente sós”. Numa delas, durante um Natal, em Roma (1903), Rilke escreve à Kappus, alertando-o sobre a importância da solidão em meio às festanças natalícias:

- “Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas – eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes, porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações”.

No ano seguinte, em carta redigida da Suécia, Rilke convida seu interlocutor a conhecer o seu próprio mundo com seus abismos, através do insulamento:

- “Havendo nele espantos, são os nossos; abismos, eles nos pertencem; perigos, devemos procurar amá-los. Se conseguirmos organizar a nossa vida segundo o princípio que aconselha agarrarmo-nos sempre ao difícil, o que nos parece muito estranho agora há de tornar-se o nosso bem mais familiar, mais fiel”.

Interessante que Rilke trata da solidão não como fantasma, mas como um espelho que nos convida a enfrentar as nossas inquietações, dores e melancolias. Nele, ao mirarmos, não há como esconder nossas feridas, somos obrigados a tocá-las e, normalmente, curá-las.

Penso que a essa altura o leitor já veja neste aprendiz alguém encerrado, quase um indivíduo sem espelho social. Não, definitivamente, não. É que também aprendi, com os anos, que para tudo há de se ter limites, pois o excesso acaba por curar um mal para se criar outro. Vinícius de Moraes, que tanto soube dos afetos e das ausências, trouxe um traço fino ao tema, no texto “Da solidão”. Nele, ele confessa que ela é fértil quando breve, mas cruel se muito duradoura, pois em exagero é cárcere. O poeta busca essa medida, ao lamentar a solidão do “ser que não ama”, do que “se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana”:

- “A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.”

Enfim, leitor, confidente silencioso, a solidão é benéfica desde que não se eternize, afinal de contas, há de se conviver também, preferencialmente partilhando um vinho com alguns poucos amigos (palavra tão banalizada). Eis o que farei hoje, pois a cada dia é hora de escrever uma nova página no livro da nossa vida, sabendo que o editor, Rei soberano chamado tempo, não é afeito a desperdícios.

Bom, espero andar um bocado mais pelas bandas de cá, com a tolerância e compreensão do editor, para que eu possa seguir, cheio de abraços e graçolas a distribuir, celebrando esse incomparável milagre chamado vida. Saudemo-la. Com doses homeopáticas de solidão, mas também com gente para muito festejar e amar.

Ops. Perdoe-me, paciente leitor, se aproveitei da coluna para cometer um desvio pessoal ao transformar o aniversariar em matéria de prosa, mas não resisti a compartilhar o momento. É porque antes eu nunca havia aniversariado tantos anos.

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.