Nos últimos dias, o país testemunhou uma sequência estarrecedora de crimes motivados por misoginia. Um série de movimentos tomou as ruas do país que se chocou com tamanha crueldade: Tainara Souza Santos teve as pernas amputadas após ser atropelada e arrastada pelo ex-companheiro em São Paulo. Catarina Kasten foi estuprada e assassinada enquanto fazia uma trilha na Praia do Matadeiro, em Florianópolis. Em Brasília, a cabo Maria de Lourdes Freire Matos foi morta e carbonizada por soldado em quartel. E, no Rio de Janeiro, Allane de Souza Pedrotti Mattos e Layse Costa Pinheiro, servidoras do Cefet-RJ, foram mortas a tiros dentro da própria instituição de ensino por um colega que não aceitava ser subordinado a mulheres.
Esses crimes não são exceção: são o retrato de um país que ocupa o 5º lugar entre os mais matam mulheres no mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). No Brasil, ser mulher é viver sob risco constante. É carregar um medo que molda escolhas, restringe movimentos e limita conquistas – inclusive no ambiente de trabalho.
Para as mulheres, o trabalho é mais do que uma fonte de renda. É proteção, independência financeira e possibilidade real de romper ciclos de abuso e violência. É autonomia na prática, independência e emancipação na vida real. E talvez seja por isso que tantos se incomodam com a liderança feminina: porque a autonomia delas desmonta a lógica de controle que ainda estrutura a misoginia no país.
O assassinato de Allane e Layse dentro do Cefet-RJ evidencia isso. Assim como o caso da cabo Maria de Lourdes no quartel. Se mulheres não estão seguras nem dentro de instituições públicas - seja escola ou quartel - durante o expediente, exercendo suas funções, onde elas estão seguras?
Os dados confirmam a dimensão do problema: 76% das mulheres já sofreram assédio no trabalho; 4 em cada 10 foram assediadas sexualmente por colegas ou chefes; 52% já foram humilhadas por serem mulheres; 97% dos casos não chegam aos canais formais de denúncia.
O ambiente de trabalho, deveria ser um espaço seguro para mulheres. Mas, não é. A violência dentro das instituições é muito mais comum do que se fala e, até normalizada – porque só vira assunto quando estampam a capa de jornais.
A fronteira entre o público e o privado não existe quando falamos sobre violência de gênero. Precisamos romper com a ideia de que “violência doméstica” se encerra dentro de casa. Ela atravessa paredes. Agressores convivem conosco em empresas, escolas, repartições públicas. Podem ser profissionais eficientes - e ainda assim, homens que ameaçam, intimidam e violentam mulheres em casa ou no trabalho. Dentro e fora expediente. Quando essas realidades entram nas organizações, os discursos sobre diversidade e equidade de gênero se tornam vazios: não se traduzem em proteção, em acolhimento ou em oportunidades reais para mulheres.
Para as mulheres, do ponto de vista estrutural, a realidade nos impõe que pensemos na nossa segurança antes de pensarmos nos nossos planos, metas e ambições. Os nossos planos não começam pelo próximo passo na direção dos nossos objetivos. Começam pela pergunta: “Estou segura?”.
Qual será a próxima violência que irá nos afastar dos nossos sonhos e dos lugares que queremos alcançar? Quantas oportunidades perdemos porque estamos ocupadas nos protegendo ou nos recuperando de uma violência vivida? Como falar de igualdade de gênero se temos que lidar com a sobrecarga, o medo e riscos diários?
Dados do Ministério de Justiça revelam que mais de mil mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil entre janeiro e setembro de 2025 Mil vidas interrompidas. Mil histórias interrompidas. Mil famílias destroçadas. E mais de 2700 mulheres sofreram tentativa de feminicídio no mesmo período.
O horror está normalizado no Brasil e, é frequentemente, diminuído por discursos ideológicos que insistem em colocar os homens e as mulheres em polos antagônicos, como se apontar a violência fosse um ataque pessoal. E não uma questão de sobrevivência.
Conhecimento sobre o crime e a criminalização da misoginia não bastam se continuam sendo tolerado socialmente. A violência contra a mulher é questão de segurança pública, não barulho em redes sociais. E não merece ser tratada apenas como estatística. É um problema estrutural grave e que exige respostas coletivas.
Por isso, o envolvimento dos homens é fundamental na desconstrução desses padrões misóginos, que alimentam a crença de que mulheres são inferiores – e normaliza a violência praticada contra elas. Não basta não agredir. Precisamos reconhecer que ouvir comportamentos misóginos e permanecer em silêncio é ser cúmplice, reforçar a desigualdade e deslegitimar as mulheres e alimentar a violência que enfrentam. Precisamos proteger e, sobretudo, acreditar, nas mulheres que relatam medo, assim como denunciar e punir os agressores. Ficar em silêncio diante da violência é se tornar parte dela.
Precisamos romper com esse cotidiano que limita as existências femininas. Um país que trata vidas perdidas como estatística não merece ter futuro. Até quando aceitaremos que nossas vidas sejam tratadas como números? Denunciar é necessário. A ação é o único caminho.