Novembro reúne três datas que revelam uma dura realidade brasileira: a vida das mulheres, sobretudo das negras, que é atravessada por desafios que não cabem em apenas uma pauta. No dia 19, celebramos o Dia Mundial do Empreendedorismo Feminino; no dia 20, a Consciência Negra; e, hoje, no dia 25, o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra Mulheres e Meninas. Três marcos que formam uma narrativa sobre autonomia, identidade e sobrevivência.
O avanço do empreendedorismo feminino no Brasil revela tanto a potência quanto a ausência de igualdade no mercado de trabalho. Segundo o IBGE, mulheres representam cerca de 34% das pessoas donas de negócios no país, e dados recentes do Sebrae apontam mais de 10 milhões de mulheres empreendedoras. Para muitas delas, empreender não é escolha: é estratégia de resistência diante da desigualdade salarial, da falta de oportunidades formais, da precarização do trabalho, da sobrecarga doméstica e da maternidade.
Quando fazemos o recorte é de cor, o cenário se revela ainda mais urgente.
O dia 20 de novembro traz a consciência negra como lente sobre a desigualdade: as mulheres negras são o grupo que mais empreende no Brasil – e também o que enfrenta mais obstáculos. A maioria lidera negócios menores, menos formalizados, e 82% dessas empreendedoras não têm empregados, além de receberem, em média, 30% menos do que a de mulheres brancas. São ainda as que mais enfrentam informalidade, pobreza e acúmulo de horas não remuneradas no trabalho doméstico. Ou seja, empreendem para sobreviver - e não porque o mercado abriu portas.
É nesse contexto que chegamos ao 25 de novembro, data global de enfrentamento à violência contra mulheres e meninas - uma violência que interrompe estudos, trabalhos, projetos e trajetórias. A violência contra mulheres e meninas é uma barreira estrutural que impede que muitas brasileiras tenham autonomia: a cada nova agressão, uma mulher reduz as possibilidades de viver em paz – e esse ciclo se acentua quando ela se contra em situação de dependência financeira.
Quando essa mulher é negra, estatisticamente, o risco é maior. No Brasil, mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica e letalidade de gênero.
Combater essa realidade exige políticas públicas, investimentos institucionais e mobilização social. Mas exige também olhar para quem já está fazendo - antes, durante e além do Estado. É nesse ponto que o trabalho de Jutthay Nogueira se torna emblemático, porque dá materialidade para o que os dados nos mostram e as datas simbolizam.
À frente do “Projeto Romper e da Casa Acolher para Mulheres”, na comunidade do Morro das Pedras, em Belo Horizonte, Jutthay oferece o que sustenta a reconstrução: acolhimento, suporte jurídico, psicológico e social, proteção a mulheres e crianças, fortalecimento comunitário, incentivo à autonomia econômica e resgate da autoestima. Ela atua onde o poder público muitas vezes não chega - no território, na urgência, na vida real.
Como eternizou Simone de Beauvoir “mudar a vida das mulheres é mudar o mundo”. Jutthay entende o óbvio, mas ainda negligenciado: sem segurança, sem confiança e sem redes de apoio, não há autonomia possível.
Seu filho, o cineasta Ben-Hur Nogueira, sintetiza essa força ao dizer que Jutthay é “literalmente uma entidade por onde passa”. Para ele, “Tarantino tem a Uma, Kleber Mendonça Filho tem a Sônia, e eu tenho a minha mãe”. Ter crescido com ela no Morro das Pedras, diz, ensinou que é possível criar oportunidades mesmo dentro de um território marcado pela violência e pela desigualdade.
Histórias como essa nos convocam a refletir: autonomia feminina não é discurso, e sim, sobrevivência. E ela só existe quando a sociedade reconhece suas responsabilidades coletivas. Não basta dizer que novembro é um mês simbólico; é preciso assumir que milhões de mulheres seguem à margem porque ainda naturalizamos desigualdades que têm cor, gênero e classe social.
Novembro, portanto, nos constrange a encarar o incômodo: não haverá desenvolvimento econômico, democracia sólida, justiça social ou liberdade sem enfrentar o racismo, sem erradicar a violência de gênero e sem apoiar quem transforma territórios todos os dias.
Enquanto o Brasil avança lentamente, mulheres protagonistas como Jutthay Nogueira seguem fazendo, no cotidiano, o que o calendário apenas simboliza: romper ciclos, criar possibilidades, reconstruir vidas e devolver dignidade.