Novembro é o mês internacional de enfrentamento à violência contra mulheres. Todos os anos, o mundo inteiro se volta para o 25 de novembro, data reconhecida pela ONU em 1999 e criada em homenagem às três irmãs Mirabal, que foram brutalmente assassinadas em 1960 por resistirem à ditadura de Rafael Trujillo, na República Dominicana. O dia 25 marca também o início dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, uma mobilização global que segue até 10 de dezembro, o Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Este período nos convida a olhar não apenas para violências explícitas, mas também para aquelas que se disfarçam de normalidade, que se escondem nas instituições e na cultura política. Entre elas, uma cresce silenciosa e perigosamente: a misoginia pública, ou seja, a forma contemporânea de violência de gênero que busca desacreditar, diminuir e expulsar mulheres dos espaços de poder.
E o episódio público mais recente, envolvendo a ministra Maria Elizabeth Rocha, a primeira mulher presidente do Superior Tribunal Militar, em seus 217 anos de existência, é a prova de que essa violência não ocorre apenas nas ruas ou nas redes: ela acontece também dentro das próprias estruturas do Estado – assim como ocorreu com a ministra Marina Silva, em junho deste ano, no Congresso Nacional.
Nos últimos dias, durante discurso na Catedral da Sé, em São Paulo, no evento em memória ao jornalista Vladimir Herzog, preso, torturado e assassinado durante o regime militar, a ministra Maria Elizabeth Rocha tomou uma posição de grande relevância simbólica: pediu perdão, em seu nome e na condição de presidente do STM, às vítimas de graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado durante a ditadura brasileira. Foi um gesto republicano, alinhado ao princípio da memória, verdade e não repetição, valores fundamentais de qualquer democracia madura.
Dias depois, na ausência da presidente, o ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira, tenente-brigadeiro da Aeronáutica, usou a sessão pública do STM para afirmar que a ministra deveria “estudar um pouco mais de história” antes de opinar sobre o período ditatorial. A frase não mirou o conteúdo da fala, nem entrou no mérito da divergência histórica. Mirou a ministra — sua capacidade intelectual, sua legitimidade, sua autoridade.
Em resposta, Maria Elizabeth Rocha explicou que seu gesto foi consciente e institucional, feito “como ato de responsabilidade pública”, reafirmando que a crítica dirigida a ela assumiu “tom misógino, travestido de conselho paternalista”.
Maria Elizabeth está certa.
A clássica obra “Mulheres e Poder: um manifesto”, de Mary Beard, ajuda a compreender com precisão o que está em jogo. Beard mostra que, na história do Ocidente, a voz pública das mulheres sempre foi tratada como algo a contido e desautorizado.
Das mitologias gregas aos salões políticos contemporâneos, uma regra se repetia: mulheres podem até entrar no espaço público, desde que não falem com autoridade. Quando falam, quando opinam, quando lideram, um mecanismo é acionado: o mecanismo de descrédito. Exatamente o que ocorreu com a ministra. Ela não foi contestada pelo argumento; foi contestada na qualidade de mulher que ousou se posicionar dentro do tradicional território masculino.
Beard resume isso com precisão: “a questão não é se mulheres têm poder, mas se a sociedade está preparada para reconhecer esse poder como legítimo”. O ataque do ministro é exemplo perfeito dessa recusa e nos mostra que não basta chegar ao poder: é preciso superar o silêncio e ser ouvida.
A frase “precisa estudar mais” não é neutra. Em um ambiente majoritariamente masculino, ela funciona como instrumento de hierarquia: reafirma quem tem legitimidade para ocupar a cadeira e quem precisa “pedir licença” para sentar nela. E isso vai muito além de uma hostilidade individual: é sobre estrutura de poder, que reflete paternalismo institucional, descrédito intelectual, tentativa de colocar a mulher no lugar de dúvida e de violência política de gênero – prevista na Lei 14.192/2021.
E o impacto não recai apenas sobre a ministra, no topo do sistema de Justiça, mas todas as mulheres que enfrentam dificuldades para serem ouvidas e todas aquelas que tentam ocupar espaços de decisão.
É sobre como a sociedade e as instituições tratam mulheres que ousam ocupar espaços e que desafiam quem tem a prerrogativa da palavra autorizada. A reação enfrentada pela ministra Maria Elizabeth Rocha não é um fato isolado: é o reflexo de uma estrutura que insiste em silenciar mulheres quando elas assumem a palavra em nome do Estado. O que se viu no Superior Tribunal Militar ecoa práticas que atravessam fronteiras e séculos: da desautorização simbólica de vozes femininas nos parlamentos às tentativas de descredibilizar lideranças. Trata-se de um mesmo padrão: quando uma mulher ocupa o espaço do poder, o poder, por sua vez, reage para lembrar que ela “não deveria estar ali”.
E é exatamente por isso que novembro importa.
Porque a violência contra mulheres não está apenas nas estatísticas de feminicídio: ela está também nas interrupções, no desprezo, nos conselhos paternalistas, no descrédito carregado de gênero, nas portas que se fecham e nas vozes que tentam silenciar.
Fato é que as mulheres chegaram ao poder. Agora, o desafio é outro: garantir que elas sejam tratadas como legítimas ocupantes desse poder, sem que precisem, constantemente, pedir desculpas, provar o motivo e porque merecem estar ali. Assim, o caso Maria Elizabeth Rocha inscreve-se na história como um espelho do nosso tempo: um lembrete de que a misoginia institucional ainda veste toga, farda e gravata. Enquanto a legitimidade da voz feminina continuar sendo tratada como concessão e não como direito, a democracia seguirá incompleta.
Representatividade não é só ocupar cadeira. É ser ouvida – e respeitada - naquela cadeira. Que possamos desafiar discursos que foram construídos ao longo da história; e que a postura firme da ministra Maria Elizabeth Rocha seja modelo na busca pela igualdade de gênero, onde os talentos sejam individualmente reconhecidos, sem estereótipos ou preconceitos sobre o seu papel.