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Clarissa Nepomuceno | Cultura ‘woke’ e igualdade de gênero: entre a visibilidade e a transformação

Visibilidade não é sinônimo de transformação; o desafio do feminismo contemporâneo é traduzir consciência em prática

Igualdade de gênero

Muitos que se opõem ao feminismo ainda o reduzem a uma guerra entre gêneros ou a uma utopia de matriarcado — quando, na verdade, trata-se de uma luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Essa distorção se agrava quando a causa feminina é associada, de forma pejorativa, à chamada cultura “woke”, frequentemente caricaturada como militância performática nas redes sociais, em vez de reconhecida como parte de um movimento histórico por mudanças concretas.

Por séculos, as mulheres foram excluídas dos espaços de poder e decisão. Foram privadas do voto, do acesso à educação superior, da autonomia econômica e do reconhecimento. Essa herança histórica não desaparece com um decreto ou uma hashtag: ainda hoje ela se manifesta nas diferenças salariais, na sub-representação em cargos de liderança e na sobrecarga doméstica que recai, de forma desproporcional, sobre as mulheres.

A transformação necessária, portanto, é estrutural. Não basta mudar palavras ou imagens em campanhas publicitárias; é preciso redesenhar práticas empresariais e institucionais que ainda mantêm as mulheres afastadas das posições estratégicas. E aqui surge uma reflexão essencial: qual é o papel — e também o limite — da cultura “woke” nesse processo?

O termo “woke”, que em inglês significa “acordado”, nasceu na comunidade afro-americana como alerta contra as injustiças do racismo. Com o tempo, ganhou amplitude e passou a expressar sensibilidade diante de pautas ligadas à diversidade, à inclusão e à representatividade. No entanto, quando reduzida ao ativismo de superfície, restrito às redes sociais, a cultura “woke” pode se tornar um entrave ao avanço da igualdade de gênero.

Isso acontece porque, quando a energia se concentra apenas na linguagem e na representatividade simbólica, as mudanças estruturais acabam esquecidas. Vemos isso todos os dias: marcas de moda que pregam “ame-se como você é”, mas seguem colocando nas passarelas modelos magérrimas sustentadas por dietas inviáveis — mesmo quando o biotipo longilíneo é exceção, não regra; campanhas antirrugas estreladas por mulheres de 22 anos; empresas que, no Dia da Mulher, publicam vídeos emocionantes sobre inclusão, mas mantêm conselhos de administração compostos majoritariamente por homens; ou instituições que estampam slogans de diversidade, mas continuam promovendo menos mulheres e pagando salários menores. É a chamada “ilusão de mudança”: parece transformador, mas não é.

Outro risco é a polarização. A lógica do cancelamento e da exclusão de quem não domina os códigos do discurso “woke” cria um ambiente de medo e resistência. O próprio Barack Obama, em 2019, às vésperas da candidatura de Biden, fez uma crítica direta: “Chega! Se tudo o que você faz é atirar pedras, provavelmente não irá muito longe. O mundo é desordenado. Existe ambiguidade. As pessoas que fazem coisas muito boas também têm defeitos.” Em outras palavras: julgar não basta; é preciso construir.

Esse barulho e a excessiva politização, em vez de ampliar o debate, acabam confinando pautas legítimas em bolhas, afastando potenciais aliados e enfraquecendo a urgência de temas essenciais para a sociedade — como a igualdade de gênero no mercado de trabalho e o direito das mulheres de serem donas das suas próprias vidas.

Isso não significa que a cultura “woke” seja irrelevante. Ao contrário, ela trouxe visibilidade inédita para temas historicamente silenciados, como o racismo estrutural, a diversidade sexual e a desigualdade de gênero. Mas visibilidade, por si só, não garante transformação.

O desafio do feminismo contemporâneo, sobretudo no campo corporativo, é traduzir consciência em prática. Isso significa assegurar campanhas de educação voltadas para homens, políticas de igualdade salarial, ampliar a presença feminina em cargos de liderança, criar mecanismos eficazes de combate ao assédio, valorizar a maternidade sem transformá-la em retrocesso na carreira e fomentar ambientes de trabalho inclusivos e plurais, nos quais as mulheres participem e tenham voz – e escuta.

Em outras palavras, depois de séculos de exclusão, as mulheres não precisam de narrativas nem de barulhos inócuos, mas de estruturas sólidas que sustentem sua plena participação econômica e social. A cultura “woke” pode abrir portas para a discussão, mas a verdadeira mudança só virá quando o discurso ultrapassar as telas e chegar às casas, aos Conselhos de Administração, às políticas públicas e aos espaços de decisão.

Como alertou Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. É justamente por isso que não podemos nos contentar com a aparência de transformação. A igualdade de gênero no mercado de trabalho exige mais do que frases de efeito: exige coragem para mudar o jogo.

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Clarissa Nepomuceno é advogada e sócia do escritório Nepomuceno Soares Advogados. Palestrante e professora universitária, defende que a independência financeira e a construção da carreira são fundamentais na ruptura dos ciclos de violência e para o alcance do ODS 5 – Equidade de Gênero.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.