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Alisson Moraes | Guernica: o grito que atravessa gerações e permanece atualíssimo

Guernica é uma obra do pintor espanhol e cubista Pablo Picasso

Guernica: o grito que atravessa gerações e permanece atualíssimo

Este é um artigo encomendado. João Tavares me pediu que escrevesse sobre Guernica assim que eu a reencontrasse. Desafio aceito. Diante de um ícone das artes, a pergunta nunca é só “o que eu vejo?”, mas “o que faço com o que vejo?”.

Vi Guernica pela primeira vez em 2010, com vinte e poucos anos. Chorei como quem é tomado por um luto antigo. A pequena cidade basca fora bombardeada em 26 de abril de 1937, numa segunda-feira de feira livre, pela Legião Condor (nazista) e pela Aviazione Legionaria (italiana): ataques, fogo e ruína. Relatos da época falaram em mais de 1.500 mortos; pesquisas posteriores estimam centenas. Diante da tela, eu não mensurei estatísticas: eu via a dor, pranteei a morte. Quão fundo pode descer a humanidade? Quanto horror somos capazes de executar, e de justificar?

Picasso não quis que Guernica fosse mero quadro de museu. Disse que só voltaria à Espanha quando a liberdade fosse restaurada. A tela viveu em exílio, acompanhando seu povo a distância, até a queda da ditadura. Por isso, estar diante dela não é só contemplação estética; é uma espécie de atravessamento da fronteira política, é compartilhar da condição de uma obra que também conheceu o desterro.

Ao pensar nisso, é impossível não lembrar de Federico García Lorca, meu poeta espanhol preferido. Assassinado em 1936, Lorca foi a palavra silenciada antes mesmo do bombardeio. Seu “duende”, essa força sombria que irrompia em cada verso, ecoa na lâmpada-olho de Guernica: ambos, poeta e pintor, insurgem-se contra a normalização da morte. Lorca foi silenciado pelo franquismo; Picasso gritou por ele e por todos nós. Guernica não é sobre a Espanha, é sobre o horror dos homens que fazem a guerra e sobre a desumanidade.

Lembro do silêncio, da luz enlutada, da sensação de que a tela nos engole e cospe verdades em nossas caras desnudas. O preto e branco anula quaisquer distrações: não há cor que alivie, não há fuga possível, só há o horror, a morte, a dor, o pior que podemos ser. A geometria picassiana cruza gritos, membros e olhos em choque; a pintura é um documento vivo, muito mais do que uma imagem.

Naquele 2010, eu carregava na cabeça as imagens do Iraque. Desde 2003, a guerra invadia o noticiário com ruínas, buscas infrutíferas por armas de destruição em massa e refugiados, muitos refugiados. Também ecoava a ofensiva em Gaza, entre 2008 e 2009, com seu catálogo de perdas civis. Sem precisar de legendas, Guernica reorganizava essas memórias em mim: civis transformados em alvos, casas reduzidas a escombros, a vida reduzida a cálculo estratégico.

Agora, volto à tela com outro olhar. O mundo mudou, e eu também. Gaza volta a estar cercada e bombardeada, e a Ucrânia segue sob ataques que arrasam cidades e infraestrutura. Nesta semana, a marinha israelense interceptou as 42 embarcações da Global Sumud Flotilla, encerrando a tentativa de romper o bloqueio naval. O governo de Netanyahu enquadrou a ação como violação do bloqueio e “encenação”, e o ministro Itamar Ben-Gvir chamou os ativistas de “terroristas”. Cada sirene contemporânea parece ecoar no cavalo ferido; cada mãe palestina ou ucraniana revive o gesto petrificado da mulher central de Guernica. É por isso que Guernica permanece viva: atualiza a denúncia de 1937 a cada novo bombardeio desumano.

A verdade é que a guerra começa antes das bombas. Começa quando a linguagem desumaniza, quando o adversário vira peste, praga, coisa. Primeiro vem o vocabulário que autoriza, depois vem o disparo que executa. Guernica e Lorca nos lembram que combater a barbárie exige vigiar o discurso que a prepara, nas tribunas, nas redes, nos gabinetes, nas conversas.

Aos 20 e poucos, eu via Guernica como memória do passado; hoje a tomo como instrumento cívico e dura distopia do presente. O quadro ensina que toda sociedade pode deslizar, devagar e “racionalmente”, rumo ao inaceitável. O que impede a queda não é a neutralidade, é o compromisso: com os direitos humanos, com a democracia, com a recusa de tratar vidas como dano colateral.

Penso no Iraque de ontem, penso na martirizada Gaza agora, na Ucrânia sitiada, e me pergunto quantas vezes ainda teremos de aprender a mesma lição. Enquanto houver aplauso fácil para solução violenta, Guernica seguirá atual. E enquanto houver quem insista na dignidade humana, o quadro seguirá de pé, acusando e instruindo.

Volto, enfim, ao pedido de João Tavares. Falar de Guernica é aceitar um chamado: recusar o espetáculo e afirmar a humanidade. Não normalizar a barbárie, nunca relativizar o sofrimento, jamais ceder ao cinismo. Guernica não muda; quem precisa mudar somos nós. Picasso e Lorca seguem atuais. E nós, não mudamos quase nada.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

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