Uma decisão financeira recente tomada por nação africana banhada pelo Oceano Índico poderia ser vista como ato burocrático distante e pouco relevante, mas ganhou enorme simbolismo macroeconômico e geopolítico.
O discreto Quênia, país de 15 milhões de habitantes com território equivalente ao estado da Bahia e Produto Interno Bruto (PIB) 50% menor do que a economia do estado do Rio de Janeiro, anunciou em outubro a conversão do dólar para a moeda chinesa renminbi, de três grandes empréstimos contraídos junto a Pequim. Em conjunto, os empréstimos originais em moeda americana totalizavam US$ 5 bilhões, valores esses usados para pagar empreiteiras chinesas pela construção de uma ferrovia que liga a capital Nairobi a segunda cidade do país, Mombassa.
A decisão representou mais uma recompensa ao paciente esforço da China no sentido de internacionalizar sua moeda e torná-la mais representativa, tanto em transações financeiras como em padrão de reserva cambial de governos mundo afora. Avançar nessa jornada significa, evidentemente, ganhar espaços onde hoje o dólar reina absoluto como referência global de valor.
A operação financeira no Quênia, na verdade, é apenas uma pequena peça do amplo e detalhado quebra-cabeças criado pelo país asiático para ampliar seus negócios e sua influência em escala planetária.
Pilar essencial dessa estratégia é o Belt and Road Initiative (BRI), informalmente conhecido como Nova Rota da Seda. Xi Jinping, secretário geral do Partido Comunista, lançou o programa em 2013 com uma visão de longo prazo que prevê avanços consistentes e coordenados até 2049, quando o país pretende comemorar os 100 da revolução liderada por Mao Tsé-Tung em posição de absoluto protagonismo econômico, tecnológico e geopolítico.
A Nova Rota da Seda obedece a um planejamento estratégico para participação chinesa em projetos de infraestrutura (portos, rodovias, ferrovias, aeroportos) e implantação de fábricas e outras operações nos mais de 130 países que aderiram ao programa (22 deles na América Latina e Caribe; Brasil não aderiu). Essa participação pode se dar por meio de seus cada vez mais sofisticados serviços de engenharia e logística ou mesmo via financiamentos.
O governo chinês define o BRI como uma “tentativa de melhorar a conectividade regional e abraçar um futuro mais brilhante”. Mas é claro que uma infraestrutura mais moderna em diferentes geografias alinhada ao seu plano de voo coloca
Pequim numa posição privilegiada em atividades de comércio e, consequentemente, em termos de influência geopolítica.
De um lado o BRI oferece a possibilidade de crescimento econômico para os países que recebem suas obras de infraestrutura. Ao mesmo tempo, ao firmarem tais parcerias com a China nesse contexto eles correm o risco de se endividar demais (o que já acontece em alguns casos) ou, pelo menos, aumentarem excessivamente sua dependência de Pequim. Decorrência natural, seus governos tendem a se aproximar da órbita de influência do país asiático.
As atividades do BRI diminuíram durante a pandemia, mas retomaram o fôlego desde 2023 e impulsionam o comércio entre a China e o chamado sul global, grupo de nações em desenvolvimento de Ásia, África e América Latina. Esse grupo recebe atualmente volume crescente de itens made in China como parte do esforço do país para redirecionar produtos impactados pelo tarifaço do governo americano e por limitações de acesso impostas pela União Europeia.
Um bom exemplo desse redirecionamento diz respeito às vendas de carros para o Brasil, que subiram mais de 50% nos primeiros três trimestres frente a 2024 (puxadas principalmente pela BYD) e já superam 10% do volume total do mercado nacional.
Outro caso relevante é o do aumento das exportações para a África. Elas cresceram 24,7% nos primeiros oito meses deste ano, gerando no período déficit comercial de US$ 59,55 bilhões nas relações com a China. O valor quase iguala o déficit de US$ 61,93 bilhões registrado nos doze meses de 2024.
Desde 2013, a Nova Rota da Seda já representou mais de US$ 1,3 trilhão em investimentos e contratos chineses naqueles mais de 130 países. Em 2023 o valor total de aportes e contratos de construção da Nova Rota da Sede foi de US$ 96,3 bilhões, segundo dados de Christoph Nedopil, da Griffith University, na Austrália e do Green Finance and Development Centre da Fudan University em Xangai citados pela revista inglesa The Economist. O número inclui todas as iniciativas estatais ou privadas da China nos países que aderiram ao programa. Em 2024 houve aumento de quase 27%, para US$ 122 bilhões. Finalmente, no primeiro semestre de 2025, novo recorde: US$ 124 bilhões em recursos comprometidos, mais do que o dobro do valor do mesmo período de 2024.
Em recente encontro com a cúpula do Partido Comunista, Xi Jinping alertou que os próximos cinco anos representarão um desafio especial. Segundo ele, a tarefa de garantir o desenvolvimento da China e manter sua segurança se torna “muito mais difícil” em meio a um “aumento notável de incertezas e fatores imprevistos”.