A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) instituiu o Dia Mundial da Filosofia, celebrado na terceira quinta-feira de novembro, para destacar o valor da filosofia no desenvolvimento da humanidade. Criada no início dos anos 2000, essa data reconhece a filosofia não apenas como atividade acadêmica, mas como prática capaz de transformar sociedades e estimular o diálogo entre culturas, como registra a própria organização: “ao despertar para o exercício do pensamento e para a confrontação racional de opiniões, ela contribui para construir sociedades mais tolerantes e respeitosas e cria as condições intelectuais necessárias para responder, de forma crítica, aos grandes desafios contemporâneos”.
Ao criar a data, o órgão da ONU partiu da convicção de que a filosofia encoraja o pensamento crítico, alarga a nossa capacidade de compreender a nós mesmos e o mundo e pode contribuir para a construção de sociedades melhores.
Mas, afinal, de que falamos quando falamos em filosofia? Desde os gregos, a palavra remete ao amor à sabedoria. É o movimento de perguntar sobre quem somos, o que é a verdade, como devemos viver, que tipo de sociedade consideramos justa. Sócrates, figura magnânima da filosofia ocidental, não escreveu livros; caminhava pelas praças de Atenas interrogando os cidadãos e afirmando que uma vida sem reflexão não merece ser vivida. É dessa insistência em perguntar, e não em oferecer respostas fáceis, que nasce a força da filosofia. A partir daí, uma imensa tradição se constituiu, legando-nos centenas de pensadores, métodos e questionamentos.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a filosofia se organiza em algumas grandes áreas clássicas, como a metafísica, a epistemologia, a ética, a filosofia política, a estética, a lógica e a filosofia da ciência. A metafísica pergunta o que existe e como se estrutura a realidade em seu nível mais fundamental. A epistemologia investiga como conhecemos, quais são os limites do saber e o que distingue conhecimento de opinião. A ética interroga o que devemos fazer e quais são os critérios de uma vida boa e justa, individual e coletivamente. A filosofia política examina as formas de poder, os direitos e as instituições que podem proteger a liberdade. A estética trata da experiência do belo, da arte e da sensibilidade. A lógica analisa a forma dos argumentos, aquilo que torna um raciocínio válido. Já a filosofia da ciência questiona os fundamentos, os métodos e o alcance das explicações científicas. Há outras áreas, mas aqui fica a visão panorâmica.
Nada disso é abstrato demais para a “vida real”. Cada uma dessas áreas atravessa decisões e conversas cotidianas: do voto que depositamos na urna à maneira como lidamos com as redes sociais, do modo como consumimos às escolhas sobre o futuro do planeta. Quando alguém compartilha uma notícia sem verificar a fonte, há ali um problema epistemológico e ético. Quando uma cidade decide onde investir mais recursos públicos, está em jogo uma questão de filosofia política e de justiça distributiva. E quando discutimos sobre Deus, se o mundo é fruto do acaso ou tem um sentido, se o universo “começou” em algum momento ou é eterno, estamos dialogando com a metafísica. Do mesmo modo, ao perguntar o que é uma vida boa, quais devem ser os limites da ciência sobre o corpo e o ambiente ou que tipo de sociedade consideramos aceitável, lidamos diretamente com a ética, a filosofia da ciência e a filosofia política, ainda que não mencionemos esses nomes.
A filosofia atravessa também campos que muitos consideram meramente “técnicos”. Em meu mais recente livro, O Poder do Planejamento: contextos, reflexões e estratégias para a excelência na gestão pública (Editora Appris, 2025), dediquei um capítulo à “filosofia do planejamento” justamente para demarcar esse ponto: não há planejamento sério, ético e virtuoso sem reflexão profunda sobre fins, critérios de justiça, concepção de tempo, responsabilidade e visão de pessoa e de comunidade. Um plano sem filosofia se reduz a planilha, e nenhuma planilha, por mais sofisticada, substitui a pergunta sobre que cidade, que país, que mundo queremos construir. A técnica organiza os meios; a filosofia esclarece os fins e impede que o cálculo ocupe, sozinho, o lugar do sentido.
Pensar o Brasil a partir da filosofia significa reconhecer a própria tradição filosófica brasileira, tantas vezes invisibilizada. No século XVIII, Matias Aires, luso-brasileiro, publicou em 1752 as Reflexões sobre a vaidade dos homens, obra refinada em que a vaidade aparece como fio que atravessa nossas decisões, nossos afetos e nossa vida social. Com ironia e agudeza, ele mostra como buscamos prestígio, aplauso e reconhecimento, e como essa busca pode obscurecer o amor à verdade e ao bem comum.
Esse movimento de retorno ao pensamento produzido no país encontra expressão em obras de síntese e referência, como Filosofia no Brasil: legados e perspectivas, de Ivan Domingues, e História da filosofia do Brasil (1500–hoje), de Paulo Margutti, que ajudam a cartografar a tradição filosófica brasileira e a recolocar o Brasil como objeto legítimo de interrogação filosófica. À medida que esses trabalhos abrem trilhas e fornecem instrumentos de leitura, têm aumentado, nos últimos anos, as teses, dissertações e pesquisas dedicadas a filósofos brasileiros, num esforço de olhar com mais generosidade e atenção para o pensamento que nasce aqui e a partir daqui. A dissertação de mestrado de Rafael Penido, meu conterrâneo itaguarense, dedicada a Matias Aires, é um exemplo entre muitos, ao lado de estudos que retomam nossos autores em diálogo com a história intelectual do país e com os dilemas da vida coletiva.
Mais perto de nós, a figura de Henrique Cláudio de Lima Vaz, o padre Vaz, é referência incontornável para a filosofia feita no Brasil. Ouro-pretano, jesuíta, filósofo e teólogo de rigorosa formação, ele construiu, ao longo do século XX, uma das obras mais densas do pensamento filosófico em língua portuguesa, articulando a tradição clássica com os desafios teóricos contemporâneos, especialmente em torno da noção de pessoa. Sua antropologia filosófica e sua trajetória mostram que é possível produzir, a partir do Brasil, filosofia de elevado nível teórico, em diálogo com a tradição e com o contexto em que vivemos.
Se a pesquisa acadêmica cumpre um papel decisivo, ela não é o único lugar onde a filosofia respira. Ao lado da universidade, há filósofos que atuam como intelectuais públicos. Parte da própria academia torce o nariz para esse movimento, acusando simplificação ou “espetacularização” do pensamento. O risco existe, mas, numa sociedade atravessada por desinformação, anti-intelectualismo e consumo rápido de conteúdo, torna-se essencial reconhecer o mérito de quem abre brechas para que a filosofia chegue a um público mais amplo e possa, a partir daí, instigar percursos menos superficiais. Nomes como Mário Sergio Cortella e Luiz Felipe Pondé, entre outros, ajudam a romper o isolamento da filosofia e a retirá-la do circuito fechado dos iniciados.
Esse isolamento (o encastelamento da filosofia) é, aliás, um dos seus maiores riscos. É sempre bom lembrar que Sócrates estava nas praças de Atenas, e não em bibliotecas ou gabinetes inacessíveis. Se hoje a filosofia não encontra maneiras de ocupar as “praças” contemporâneas, sejam elas as escolas, as ruas ou as plataformas digitais, corre o risco de se reduzir a um exercício de prestígio interno, irrelevante para a vida concreta das pessoas. O que muitos intelectuais públicos fazem, com todas as limitações do formato, é justamente retomar esse gesto socrático elementar: levar perguntas difíceis para lugares onde elas normalmente não aparecem, provocar algum desconforto, convidar ao espanto e à dúvida.
O diálogo da filosofia com as demais áreas do saber torna-se ainda mais urgente numa época marcada por algoritmos e inteligência artificial (IA). Plataformas digitais selecionam o que vemos, com quem falamos, o que compramos e que notícias chegam até nós, enquanto modelos de IA já participam de decisões sobre crédito, seleção de currículos, políticas públicas, segurança e diagnóstico médico. A questão decisiva, portanto, deixou de ser apenas o que essas tecnologias conseguem fazer e passou a ser que tipo de humanidade queremos ser diante delas, que limites desejamos estabelecer e que valores estamos dispostos a preservar quando delegamos decisões a máquinas e algoritmos. Não basta maravilhar-se com a eficiência técnica; é preciso parar, refletir e perguntar quem define os critérios, quem controla os dados, quem se beneficia e quem é sistematicamente deixado de fora. Os softwares podem até produzir respostas rápidas, mas não substituem o trabalho mais lento da reflexão crítica, do discernimento ético e da responsabilidade coletiva que essas perguntas exigem.
Nesse cenário em que algoritmos filtram o que vemos e em que decisões vitais são cada vez mais mediadas por sistemas automatizados, a tentação de expulsar a filosofia dos currículos escolares ou de reduzir drasticamente a sua carga horária é perigosíssima para a humanidade. Na prática, trata-se de limitar a capacidade crítica das novas gerações justamente quando elas mais precisariam de instrumentos para interrogar o mundo. A própria UNESCO, ao instituir o Dia Mundial da Filosofia, sublinhou a importância de fortalecer o ensino da disciplina no mundo inteiro, porque a filosofia é um exercício inafastável de questionamento, argumentação e diálogo.
Nesse ponto, é imperativo voltar a Sócrates. O pensador ateniense foi condenado por um júri de cidadãos, acusado de corromper a juventude e de impiedade, isto é, de não reconhecer os deuses da cidade e introduzir novas formas de religiosidade. Aceitou a sentença, recusou fugir e morreu ao beber cicuta. A cidade que o condena não suporta a possibilidade de que seus jovens aprendam a pensar por conta própria, a interrogar tradições, a expor contradições e a desarmar discursos oficiais. Dois mil e quatrocentos anos depois, o incômodo permanece: quem questiona demais ainda é visto como “corruptor”, “inconveniente” ou “desagregador”, sobretudo quando desafia interesses estabelecidos e lógicas de poder que preferem o silêncio à dúvida.
Diante desse contexto, celebrar o Dia Mundial da Filosofia significa muito mais que reverenciar um passado glorioso. Significa defender, no presente, o direito de perguntar, de duvidar, de discordar e de educar a juventude e a humanidade para a crítica, e não para a obediência cega, que só interessa aos regimes autoritários. Em tempos de algoritmos que nos trancam em bolhas de opinião, de reformas educacionais que tentam esvaziar as humanidades e de crises ecológicas e sociais que exigem escolhas difíceis, a filosofia continua formulando a pergunta incômoda que levou Sócrates ao banco dos réus em Atenas, pergunta que hoje poderia ser dirigida a cada um de nós, individual e coletivamente: estamos realmente vivendo uma vida que vale a pena ser vivida?