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Alisson Moraes | Lô Borges: a metafísica mineira e a lírica do Clube da Esquina

Lô se foi, mas o que ele construiu segue dizendo, em voz baixa e definitiva: ‘os sonhos não envelhecem’. Nem morrem

Cantor e compositor Lô Borges morreu no dia 2 de novembro, aos 73 anos

Semana passada, neste mesmo espaço, celebrei os 83 anos de Milton Nascimento. Hoje volto à mesma mesa, às mesmas esquinas, mas com um peso no peito: a música perdeu Lô Borges.

É como se uma das colunas de sustentação do céu mineiro tivesse, de repente, passado de presença a lembrança. A gente sabe que todos vão, que a turma está envelhecendo, que Tavito e Brant já se despediram, que os retratos ganham moldura; ainda assim, quando a notícia chega, parece sempre cedo demais para quem nos ensinou que juventude é claridade de alma, que se sonha em voz coletiva e que a beleza mora no gesto simples do cotidiano. Quem nos ensinou a pintar o trem de azul, a transformar a Via-Láctea em vizinhança, a ouvir o vento solar na janela, a celebrar a vida e a dança, a ver as cores do pensamento iluminando as esquinas da cidade e da existência.

No sábado, conversando com Celso Adolfo, estávamos apreensivos com o estado de saúde de Lô. Entremeio silêncio suspenso de quem pressente que algo grave ronda, nos agarrávamos à esperança como quem tenta segurar um trecho de melodia.

Dias depois, o luto. Nesse gesto íntimo de dois mineiros falando de outro, compreendi com mais nitidez o que Zeca Baleiro sintetizou numa entrevista no dia do velório: hoje é um misto de honra e pena, honra por ter caminhado ao lado de alguém tão grandioso, pena pela partida insólita. Honra por ter dividido canções com um gênio raro; pena por saber que certas linhagens não se repetem, porque há artistas raros que pertencem à conjunção exata de um tempo.

O Clube da Esquina nasceu assim: um grupo de jovens amigos numa esquina de Santa Tereza, entre a Rua Divinópolis e a Rua Paraisópolis, fazendo da calçada o próprio clube, porque não havia dinheiro para frequentar os clubes dos ricos. Não tinham sede social, tinham violão. Não tinham salão de baile, tinham rua, caderno, cinema comentado, discos garimpados, sonhos compartilhados. Nenhuma cartilha estética, nenhum manifesto programático; apenas a convivência, a conversa e a intuição de que daquela esquina improvável poderia nascer uma música capaz de falar com o mundo inteiro.

Com Milton Nascimento como eixo afetivo e sonoro, e ao redor dele Lô, Márcio, Fernando Brant, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso, Tavito, Tiso, Ronaldo Bastos, o Clube fez o impossível: criou uma linguagem entre os Beatles e o barroco mineiro, entre a música de rua e a sofisticação harmônica, entre a fé no povo e a perplexidade sob a ditadura. Misturou jazz, rock progressivo, modas de viola, violões coloniais, sopros, corais, ruídos de estrada.

Lô Borges, Juscelino Kubitschek e Milton Nascimento

Há uma foto extraordinária capturada ao acaso pelo Juvenal Pereira que ajuda a entender o lugar histórico desse gesto: Juscelino Kubitschek, em Diamantina, 1971, cercado pelos meninos do Clube, Lô entre eles, numa cena que parece invenção de roteirista. O ex-presidente que encarnara o projeto desenvolvimentista democrático, agora deposto, encontra aqueles garotos que a imprensa dizia ser “os Beatles brasileiros”. Imagem de uma travessia geracional. O Brasil moderno, sonhado e interrompido, sentado ao lado de uma geração que, com guitarras, pianos e vozes, inventaria outra forma de resistência: uma música que não grita, mas infiltra liberdade em cada acorde. O Clube da Esquina sempre esteve num território político muito particular: uma política da delicadeza, da amizade, da cidade como espaço compartilhado, da utopia que se diz em primeira pessoa do plural.

Lô Borges é um dos corações dessa ética. Ele traz para dentro do Clube a juventude insolente e tímida, a melodia que parece simples e é profundamente sofisticada, o risco de assinar, aos 20 anos, um disco histórico e um solo (“Disco do Tênis”) como quem brinca, e depois recuar do mercado, dos holofotes, da lógica industrial. Ele recusa ser fábrica. Escolhe o hiato, escolhe a via-láctea. Em 1979, quando volta com “A Via-Láctea”, não é um retorno calculado, é um gesto de coerência poética.

Lô compreende, antes de muita gente, que criação verdadeira não funciona em linha de montagem. Cada canção é uma estrela que leva o tempo que precisa para acender. E quando acende, pode iluminar uma geração inteira de compositores e ouvintes que descobriram, através dele, que Minas podia ser também esse cosmos de acordes oblíquos, imagens súbitas, delicadeza radical.

Há uma força imagética em suas canções que nos assombra. Aquele “grão de tão pequeno ser tão grande”, o corpo que navega no céu e no ar, o azul como morada possível, tudo isso representa uma metafísica mineira. Lô reinscreve Minas no mapa da canção quase como uma categoria filosófica: é a terra do recolhimento que ousa ser universal, do silêncio que aprende a falar alto sem perder a ternura.

Minas rima com Lô, Lô rima com Minas; essa identidade é experiência de quem atravessa ruas estreitas e avenidas largas, histórias e contemporaneidade e descobre nelas a passagem para um infinito. Numa época em que a música se converteu, tantas vezes, em ruído descartável, a obra de Lô afirma uma outra lógica: menos algoritmo, mais alma; menos pressa, mais permanência.

O Clube da Esquina sempre foi, antes de tudo, uma ética da amizade. Nas letras e arranjos, há um modo de estar-junto que contradiz o individualismo feroz que hoje coloniza até a arte. Os encontros nos bares, nas praças e nas esquinas de Belo Horizonte produziram uma pedagogia das relações.

As canções reivindicam a cidade como espaço partilhado, como cenário da ternura, do debate, da diversidade, da dor e da esperança. O Clube reocupou o espaço público pelo afeto, pela invenção e pelo sonho, lembrando que a verdadeira modernidade brasileira não é a da demolição de vínculos, mas a da ampliação dos laços.

“Os sonhos não envelhecem” é um pacto geracional: é promessa de que o tempo pode até levar os corpos, mas não consegue confiscar o que foi vivido em comum. Por isso, a morte de Lô é uma convocação a duas tarefas simultâneas. A primeira é proteger a memória, ouvir de novo, com atenção renovada, o “Clube da Esquina”, o “Clube II”, o “Disco do Tênis”, “A Via-Láctea”, as parcerias recentes como o belíssimo encontro com Zeca Baleiro, onde essa linha rara de compositores se reencontra e nos lembra que ainda é possível fazer música grande em tempos pequenos.

A segunda é valorizar quem está aqui fazendo a mineiridade musical em nosso tempo. É uma doce obrigação olhar com respeito e contemplação para artistas que seguem, com a mesma integridade mineira, compondo de dentro para fora, como o Celso Adolfo, que há décadas desenha melodias e narrativas que honram essa tradição, reafirmando que a força criadora de Minas não é uma peça de museu, é um organismo vivo, pulsante, ético e estético. Celebrar Lô exige reconhecer essa linhagem inteira e defendê-la do cinismo, da pasteurização, do mercado que não sabe lidar com sutilezas.

Em nossa conversa, dias atrás, acho que eu e Celso chegamos, sem usar essas palavras, a uma síntese: quando um artista como Lô Borges parte, não se fecha um ciclo, amplia-se uma responsabilidade. A de manter aceso o clube invisível das esquinas que acreditam na amizade como forma de resistência, na cidade como palco da convivência, na música como lugar onde a vida pode ser mais justa, mais bela e menos brutal.

Enquanto houver gente escutando essas canções, organizando a própria sensibilidade à luz dessa ética, Minas continuará lançando claridão sobre um país tantas vezes umbroso. Lô se foi, mas o que ele construiu segue dizendo, em voz baixa e definitiva: “os sonhos não envelhecem”. Nem morrem.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

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