Alisson Moraes | Natal, traze a fresca manhã

Natal é reflexão íntima e oportunidade de dar vazão ao afeto

Natal é período de renovação de expectativas

Alex Araújo, jornalista da Itatiaia e um dos responsáveis por este portal, me perguntou ontem se eu escreveria um artigo nesta semana de Natal. Eu não havia planejado, confesso. Mas é véspera natalina, eu estou em Roma, e a cidade inteira se oferece como palco onde nascimento e ruína convivem, promessa e excesso se encaram. Como não escrever? Eis aqui um texto que nasce mais de uma veia poética que eu julgava adormecida do que dos veios da racionalidade que normalmente me conduzem.

Roma é assim: ao mesmo tempo monumento e uma lembrança de que tudo passa. Por isso, talvez, a cidade eterna seja um bom lugar para recordar o que o Natal deveria ser, quando não se reduz à imposição do calendário, à sedução da vitrine e a costumeira correria do fim de ano. Aqui, até a beleza parece ter consciência do tempo: ela brilha, mas não está imune ao tempo.

Há um Natal barulhento. Esse que chega com a urgência do consumo, com a pressa do cartão, com a ansiedade do presente certo, com a obrigação de parecer feliz. Esse Natal costuma nos deixar ainda mais cansados, e às vezes mais sós e infelizes. E há um Natal que sussurra, como a voz de vovó ao rezar o Rosário.

Rubem Alves escreveu, com a delicadeza de quem conhecia a alma humana, uma frase que vale por um gesto de pausa: “O Natal é o dia em que se para tudo a fim de se contar e a fim de se ouvir uma estória (...) quando ele nasceu aconteceu uma mágica com o mundo: tudo ficou diferente: as árvores se cobriram de vaga-lumes, as estrelas brilharam com um brilho mais forte, e até uns reis deixaram os seus palácios e foram ver o nenezinho”.

O Natal é o silêncio que reorganiza a alma. É a escuta da estória desarmante: um menino nasce pobre, fora do centro do poder, e, ainda assim, desloca o mundo, porque faz o sagrado caber na fragilidade de uma manjedoura. Para quem crê, é Jesus; para quem apenas escuta, é um lembrete de que a vida começa pequena e só cresce quando encontra cuidado.

Escutar é ato revolucionário num tempo em que quase tudo exige reação imediata, comentário rápido, indignação em série. A estória do Natal é a história de Jesus, não é um convite ao consumo de símbolos; é um convite à conversão do olhar. Trocar o foco do brilho para a fragilidade. Trocar a estética do luxo pela ética do cuidado. Trocar o “meu” pelo “nosso”, sem precisar discursar, apenas escolhendo de outro jeito.

A pergunta pode reaparecer, simples e incômoda: quem foi Jesus? Hoje ele é menino. Ele não é instrumento de disputa, ele é corpo pequeno, nascido num canto improvável, longe do poder. Há uma frase curtíssima no Evangelho que atravessa séculos e continua desconcertante: “E a Palavra se fez carne.” O sagrado não se manifestou na arrogância, na grandiloquência, mas na vida comum.

Há algo moralmente incoerente em celebrar o nascimento de um menino pobre e, ao mesmo tempo, naturalizar a indiferença diante dos pobres reais. Há algo espiritualmente estranho em enfeitar presépios e tolerar a brutalidade como método político. Há algo quase blasfemo em usar o nome de Deus para justificar desprezo, violência simbólica e culto à força. Se a história do Natal tem algum “milagre” possível, ele não está em efeitos especiais; está na capacidade de quebrar a frieza que nos torna cúmplices de injustiças cotidianas.

O Natal é família. E é justamente por isso que ele dói em quem está longe, em quem perdeu alguém, em quem não tem com quem se sentar à mesa. Aqui, do outro lado do oceano, eu sinto esse contraste. O abraço não dado vira frase, parágrafo, coluna de jornal, sem obrigação, com afeto. E o que poderia ser apenas saudade tenta, nesta véspera, ganhar forma de presença. Escrevo quase às pressas, mas com uma liberdade rara: a de dizer sem pose, conversa baixa. Talvez escrever seja uma forma de diminuir distâncias. Há uma ideia que me acompanha, um bilhete simples no bolso: um escritor nunca está só, porque há leitores e leitoras do outro lado da página. É uma amizade silenciosa, mas real.

Natal é reflexão íntima e oportunidade de dar vazão ao afeto. Experimente reduzir o ruído. Não por ascetismo, nem por culpa. Só para caber mais vida. Faça uma ligação que você vem adiando. Peça perdão sem encenar superioridade. Agradeça sem ironia. Trate com dignidade quem te serve. Repare em quem está à margem da sua festa. E, se a fé fizer sentido para você, deixe que ela te empurre para a responsabilidade, nunca para o julgamento. Afinal, Deus-menino, recém-nascido, não vem para julgar, mas para proclamar o amor e salvar a humanidade.

É preciso, por fim, recorrer a Adélia Prado, que sabe pedir sem ferir e sabe rezar em mineiros versos universais:

“Tem piedade de mim,

desce, orvalho do céu,

desce sobre nós,

restabelece o fio das conversas saudáveis.

Traze a fresca manhã.”

De Roma, eu termino como comecei: com coincidências que parecem avisos discretos. Uma história antiga que insiste em nos perguntar se ainda somos capazes de ternura, de justiça e de compromisso com os outros.

Feliz Natal. Que o nascimento não fique preso ao presépio, ao presente, à árvore enfeitada. Que ele desça sobre nós como orvalho, restabeleça o fio das conversas saudáveis e, no meio do cansaço do mundo, traga a fresca manhã.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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