Alisson Moraes | Desigualdade estrutural não combina com o espírito cristão do Brasil

A desigualdade também faz mal ao país no sentido mais pragmático da expressão. Ela derruba crescimento, desperdiça talentos e estreita mobilidade social

Árvore de Natal na Praça Tiradentes, centro histórico de Ouro Preto

As luzes de todo o país estão acesas, os presépios estão montados, os ingredientes das ceias já estão sendo comprados, os cartões e votos de paz chegam a todos os lares brasileiros. O Natal é essa pausa raríssima em que a sociedade se lembra que a fragilidade existe, que a vida é dádiva, que Deus nunca nos abandonou. Mas há um incômodo que atravessa esta época do ano: a distância abissal entre o que dizemos celebrar e o que toleramos como “normal” no cotidiano brasileiro.

Na última semana, um dado tenebroso veio à tona: o Brasil aparece entre os campeões globais da desigualdade. O World Inequality Report, coordenado pela rede do World Inequality Lab, mostra que em nosso país os 10% do topo concentram 59,1% da renda nacional, enquanto a metade mais pobre fica com apenas 9,3%. No recorte de riqueza, a fotografia é ainda mais dura: os 10% mais ricos detêm 70,1% do patrimônio, e o 1% sozinho fica com 37%. É como se um país inteiro trabalhasse, pagasse contas e envelhecesse para sustentar um arranjo em que a prosperidade se torna um condomínio de poucos privilegiados.

É verdade que o choque não é apenas brasileiro. O mesmo relatório descreve um mundo em que o topo se descola do resto com velocidade histórica: os 10% mais ricos concentram 75% da riqueza global, e a metade mais pobre fica com apenas 2%. No limite do absurdo estatístico, menos de 60 mil pessoas, o 0,001% do planeta, controlam três vezes mais riqueza do que a metade mais pobre da humanidade. Não é um “excesso” do sistema, é o próprio sistema dizendo, sem pudor, para quem ele foi desenhado.

Há quem reaja a números assim com um reflexo defensivo: “é inveja”, “é vitimismo”, “é discurso ideológico”. Só que desigualdade, nesse patamar, não é um sentimento. É uma arquitetura. Ela organiza acesso à educação de qualidade, ao hospital que funciona, ao transporte que não humilha, ao tempo livre, à segurança, à cultura e, sobretudo, ao poder de influenciar decisões públicas. Quando a desigualdade vira essa regra imutável, a democracia paga a conta, porque a cidadania se torna formal para muitos e plena para pouquíssimos. O relatório é explícito ao lembrar que a progressividade tributária costuma desabar no topo e que fortunas encontram brechas para pagar, proporcionalmente, menos do que a maioria.

A desigualdade também faz mal ao país no sentido mais pragmático da expressão. Ela derruba crescimento, desperdiça talentos e estreita mobilidade social. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem uma série de estudos mostrando que desigualdade elevada prejudica o desempenho econômico, em parte porque reduz oportunidades para quem nasce em desvantagem. É a economia do desperdício humano: quando o elevador social quebra, o país inteiro perde produtividade, inovação e coesão social. Como alguém pode se sentir pertencente a uma sociedade que insiste em marginalizar?

Eis um efeito político silencioso e corrosivo: a desigualdade fragmenta o senso de pertencimento. A própria rede do relatório chama atenção para democracias ocidentais em que as clivagens de renda e educação deixam de se alinhar, produzindo sistemas partidários “multielite” e dificultando coalizões amplas em favor de políticas redistributivas. Em bom português: quando cada grupo vive em um mundo distinto, fica mais fácil naturalizar o intolerável e chamar privilégio de mérito.

Como se não bastasse, o relatório mostra que desigualdade econômica e injustiça climática caminham juntas. A metade mais pobre adulta do mundo responde por apenas 3% das emissões de gases de efeito estufa associadas à propriedade de capital privado, enquanto os 10% mais ricos respondem por 77%. Os mais vulneráveis, que menos emitem, são também os mais expostos às catástrofes e os menos preparados para reagir. A lógica é perversa: quem mais se beneficia dessa engrenagem tem mais recursos para se proteger das suas consequências.

Nesta semana, na Audiência Geral de 17 de dezembro, o Papa Leão XIV resumiu o ponto com uma frase que deveria constranger qualquer sociedade que se diz cristã: “Acumular riquezas não dá sentido à vida, nosso tesouro está no coração”. Há muitos cristãos precisando ouvir o Papa e ler melhor o Evangelho.

É aqui que o Natal se torna também momento para um julgamento ético. No Evangelho, a mensagem de Cristo é muito clara: “tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber”. E, no mesmo trecho, a cobrança se aprofunda: “Em verdade eu vos digo: todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25). Ou seja, o critério não é a aparência da fé, mas o destino concreto do pobre, do excluído, do invisível. Um país que se descreve como cristão não deveria achar compatível rezar de um lado e aceitar, do outro, que a desigualdade seja administrada como paisagem imutável.

Há um pensador do século 20, Jacques Maritain, associado ao humanismo de inspiração cristã, que ajuda a traduzir isso para a política: não existe democracia de verdade sem a centralidade da dignidade humana e sem uma cultura pública de solidariedade. Quando a sociedade admite que alguns nasçam para a escassez e outros para a abundância, ela não apenas fere uma ética religiosa; ela erode o fundamento civil da igualdade de direitos. É o tipo de contradição que, cedo ou tarde, cobra seu preço em forma de cinismo social e radicalismos.

Dizer tudo isso não resolve nada, claro, se ficar apenas no lamento. Mas o próprio relatório aponta caminhos conhecidos e testados: tributação mais progressiva, enfrentamento de brechas que blindam o topo, investimentos consistentes em educação e saúde, e políticas de transferência que protegem a base sem tratar a pobreza como destino. Isto é, reduzir desigualdade é uma escolha pública e deve ser uma prioridade orçamentária.

Talvez a melhor pergunta para estes dias pré-natalinos não seja “qual será a minha ceia?”, mas “qual será o meu país?”. O espírito natalino, quando é levado a sério, não combina definitivamente com indiferença organizada e admitida. Nunca é demais lembrar que a desigualdade persistente não é uma falha técnica do Brasil: é uma decisão histórica que a gente renova, ano após ano, quando aceita que a pobreza fique do lado de fora da festa. Ou da ceia.

Leia também

Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

Ouvindo...