Alisson Moraes | Control C, Control V: agentes políticos insistem no copia e cola e desistem de planejar

No papel, o Brasil construiu um modelo de planejamento que muitos países não têm. Na prática, uma parte expressiva dos municípios continua fingindo que planeja

Control C e Control V

Por obrigação profissional e compromisso cívico, passei os últimos dias estudando os PPAs (Planos Plurianuais de Ação Governamental) de alguns municípios brasileiros. Examinei 20 planos plurianuais de cidades pequenas e médias, de diferentes regiões. Se o leitor colocasse boa parte deles lado a lado, teria a sensação de estar abrindo o mesmo arquivo várias vezes: muda o nome do prefeito, as datas, algum parágrafo de apresentação, mas o miolo é quase idêntico.

É o velho “Control C, Control V” aplicado ao planejamento público. E esse copiar e colar é perigoso para a democracia e para o futuro das cidades. Não foi para isso que o Brasil constitucionalizou o planejamento em 1988.

A Constituição Federal alçou o planejamento ao centro da gestão pública ao exigir que leis de iniciativa do Poder Executivo estabeleçam, em cadeia, o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). O artigo 165 da nossa Magna Carta define esse tripé como a engrenagem que organiza objetivos, metas e orçamento do Estado, criando um ciclo obrigatório e contínuo de planejamento. A Constituição mandou o Estado parar de governar no escuro.

Para que serve cada peça dessa engrenagem? O PPA deve trazer, de forma minimamente organizada, as diretrizes, objetivos e metas para despesas de capital e programas de duração continuada, ou seja, aquilo que muda estruturalmente a cidade. A LDO faz a ponte ano a ano, ajustando prioridades e definindo metas fiscais e regras para a montagem do orçamento. A LOA, por fim, autoriza receitas e despesas, colocando as escolhas políticas em números, dentro de um exercício financeiro.

Estados e municípios internalizaram esse desenho em suas constituições e leis orgânicas, adaptando prazos e procedimentos, mas mantendo a lógica de articular médio e curto prazo no planejamento. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) reforçou essa arquitetura. Logo no artigo 1º, parágrafo 1º, ela afirma que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe “ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”. E, no artigo 48, determina que a transparência inclui a realização de audiências públicas na elaboração e discussão do PPA, da LDO e da LOA. Não é gentileza do governante “ouvir a população”; é obrigação legal!

No papel, o Brasil construiu um modelo de planejamento que muitos países não têm. Na prática, uma parte expressiva dos municípios continua fingindo que planeja. Foi isso o que encontrei ao analisar os PPAs municipais: de 20, 18 são ruins ou muito ruins: textos genéricos, copiados de mandatos anteriores, metas vagas que caberiam em qualquer governo, indicadores frágeis ou completamente inexistentes.

Em alguns casos, o PPA 2026–2029 é praticamente o mesmo de 2022–2025, com datas e nomes trocados. Se o PPA é o “mapa de voo” do mandato, estamos autorizando pilotos a decolar sem revisar a rota, o combustível e as condições da aeronave. Ou seja, cresce muito a chance de o avião não chegar ao seu destino – e, no meio do caminho, sofrer turbulências graves ou até mesmo cair.

Essa baixa qualidade não é mero detalhe. É um problema profundo. Um PPA minimamente sério deveria partir de um diagnóstico concreto da realidade local, estabelecer objetivos claros e mensuráveis, estimar custos, indicar fontes de financiamento e organizar programas e ações com começo, meio e fim. Deveria dialogar com o plano diretor, com os planos setoriais (educação, saúde, saneamento, mobilidade, meio ambiente) e com a capacidade real de investimento do município.

O que se vê, no máximo e com olhar menos crítico, são catálogos de boas intenções, sem hierarquia, sem prioridades e sem compromisso verificável com resultados. A participação social, que a Constituição e a LRF colocam como eixo do processo, em muitos lugares virou ficção burocrática. Há municípios que simplesmente não realizam audiências públicas, em afronta direta ao espírito da lei; outros fazem encontros protocolares, mal divulgados, em horários impraticáveis, apenas para anexar uma ata ao projeto de lei e “cumprir tabela”. Quando a comunidade não é ouvida na definição das prioridades, o PPA vira mero documento interno da administração, muitas vezes desconhecido até pelos próprios secretários.

Há um argumento recorrente, especialmente em cidades pequenas e médias: “não dá para planejar muito porque os recursos são escassos”. Essa frase, repetida à exaustão, está de cabeça para baixo. Planejar dá trabalho, mas é precisamente esse trabalho que separa a boa gestão do mero faz-de-conta administrativo. Justamente porque os recursos são escassos é que o planejamento precisa ser melhor. Em contexto de abundância, é relativamente simples dispersar recursos em múltiplas frentes; em contexto de penúria fiscal, a ausência de prioridades se transforma em crueldade com a população.

A escassez não é desculpa para o improviso; é a principal razão para superá-lo. Planejar, portanto, é escolher. E escolher dói e pressupõe renúncias. Existe uma regra simples: cada secretaria, fundação ou autarquia deveria explicitar, no PPA, cinco prioridades centrais para o período, com metas e indicadores claros; e o governo, como um todo, deveria assumir, de forma transparente, cinco prioridades estratégicas para a cidade. Quando tudo vira prioridade, nada é prioridade.

Em 1962, no governo João Goulart, o Brasil criou o Ministério do Planejamento, tendo Celso Furtado como primeiro titular da pasta e responsável pelo Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social. Em um momento em que muitos países sequer cogitavam instituições de planejamento, o Brasil arriscou um salto, ainda que o Plano tenha sido atropelado pelo golpe de 1964 e pelas circunstâncias econômicas adversas. Somos, portanto, uma nação que já levou planejamento a sério no topo da Federação. Não faz sentido aceitar improviso permanente na base, nos municípios, onde a vida acontece.

Lamentavelmente, muitos municípios continuam reféns de emendas parlamentares e convênios eventuais. Em vez de o PPA orientar a busca e a negociação desses recursos, costuma acontecer o contrário: corre-se atrás das emendas primeiro e, depois, tenta-se “encaixar” os projetos no plano, muitas vezes a posteriori, só para “legalizar” o que já foi decidido. A lógica se inverte: o orçamento deixa de ser instrumento de um projeto de cidade e se transforma em objeto de barganha fragmentada.

Um planejamento minimamente responsável exige outra postura: conter e qualificar despesas correntes ao longo do ciclo, para abrir espaço a investimentos escolhidos pela própria comunidade local, e não apenas impostos de fora.

Há cidades que levam o PPA a sério, articulam o plano com o plano diretor, promovem audiências consistentes, definem metas ousadas e realistas em educação, saúde, meio ambiente, cultura, mobilidade. Há consórcios intermunicipais que planejam conjuntamente saneamento, resíduos, saúde regional. Eles mostram que, mesmo em ambiente fiscal adverso, é possível produzir bons PPAs quando há liderança política, capacidade técnica e respeito às instituições. Esses exemplos precisam ser conhecidos, difundidos e protegidos.

A fotografia majoritária, porém, ainda é preocupante: PPAs escritos às pressas e desconectados da realidade. São cidades que navegam em mar revolto com mapas mal desenhados e bússolas desreguladas, enquanto se cobra dos gestores resultados que jamais caberiam na fragilidade desses instrumentos. Como lembrava Sêneca, “não há vento favorável para quem não sabe a que porto se dirige”. O PPA é, ou deveria ser, esse porto pactuado: a imagem de futuro que um município assume diante de si mesmo.

Quando a Constituição obriga União, estados e municípios a planejar, ela não está apenas impondo um ritual administrativo; mas antes está a afirmar que a República tem memória, projeto e responsabilidade para além dos calendários eleitorais. O artigo 165 e as normas que o cercam não são tecnicismo; são a tentativa de impedir que o Estado viva de sobressaltos, governando apenas para o hoje ou no máximo para o dia seguinte.

O Brasil tem tradição, experiência e inteligência acumulada para fazer muito melhor do que tem feito na maioria dos PPAs municipais. Em pleno século XXI, é um contrassenso aceitar que nossas cidades continuem tratando o planejamento como papel de gaveta, escrito em “Control C, Control V”. Quando um governante abre mão de planejar, está, no fundo, desistindo de governar: passa a administrar o dia a dia, mas não cuida do amanhã, deixa a cidade refém do improviso e dos humores da política. E uma cidade governada apenas pelo improviso é uma cidade desorganizada e que falha, sobretudo, com as pessoas que mais precisam do poder público.

Que valha a lição: planejar dá trabalho, mas improvisar custa caro. Custa, inclusive, o futuro.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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