Dizem-me os bons conselheiros da escrita periódica que colunista não pode se omitir quando o país é sacudido por fatos graves, ainda que a pauta pareça gasta. Cumpro, portanto, o dever de tratar da operação policial no Rio de Janeiro, de 29 de outubro. Mas não abandono o plano desta semana: homenagear Milton Nascimento por seus 83 anos, celebrados no domingo, 26 de outubro. São temas distintos e serão abordados separadamente. Começo por Milton e, na sequência, volto-me ao Rio.
É preciso celebrar Milton. Sua vida e obra lembram que o Brasil é um país possível: de onde brotam, apesar de tudo, genialidades como as de Machado de Assis, Carlos Chagas, Glauber Rocha, Guimarães Rosa, César Lattes, Paulo Freire, Fernanda Montenegro, Miguel Nicolelis, Chico Buarque, Maria Bethânia, Caetano e Gil – e, claro, um Milton Nascimento. Não é otimismo ingênuo; é constatação histórica. Do Clube da Esquina a “Travessia”, da criação coletiva à sofisticação harmônica, Milton costurou Minas, o Brasil e o mundo em linguagem própria, capaz de reunir vozes e diferenças sem apagar ninguém.
Caetano Veloso escreveu por ocasião do aniversário: “Milton Nascimento é o maior artista da música de minha geração. Catolicismo mineiro, DNA africano, Milton desceu o vale do Mississippi e subiu os Andes com seus acordes e ritmos cheios de milagre e surpresa. Criou uma escola definida, formou legião de gênios, encantou os gênios do grande mundo e manteve tudo onde o oculto do mistério se escondeu.” É difícil dizer melhor: Milton abriu caminhos e, ao mesmo tempo, guardou o mistério, lembrando que a grande arte é também um horizonte de nacionalidade.
Não há exagero nas palavras de Caetano. Nem houve quando Elis Regina disse: “Se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento.” Para todas as gerações, Milton é referência: uma voz inconfundível, presença que atravessa tempo e estilos, padrão de excelência musical brasileira. O canto doce diz com firmeza, e a ousadia convive com a delicadeza. Em Milton há uma ética da escuta que liga Minas, Brasil, África, e o mundo, lembrando que a grandeza dispensa gritos performáticos: nasce do íntimo e se projeta em sentimento e técnica apuradíssimos.
Em 2013 vivi uma das experiências mais marcantes da minha vida: assisti a um show intimista de Milton para poucos convidados, por ocasião da inauguração de um shopping na Região Metropolitana de BH. Eu estava apreensivo: Milton vinha atravessando dificuldades. De repente, ele surgiu no palco, sob aplausos que não cessavam, e, em silêncio solene, tomou o microfone. Cantou por uma hora, em estado de concentração absoluta. Afinado, preciso, inteiro. A música suspendeu o tempo. Eu que havia pedido para ir ao camarim após o show para tirar uma foto com o ídolo, esqueci completamente de tudo. Só me lembrei já na estrada, voltando para Itaguara. Eu, com vinte e poucos anos, estava absorto, tentando acreditar no concerto que acabara de ver. A força daquela voz e daquela presença dizia, sem esforço, tudo o que eu tento dizer aqui com muitas palavras.
Milton é o verdadeiro artista-tensor: com a voz, ele estica a realidade para que caibam nela todas as nossas dores e as nossas esperanças. É Minas em estado sonoro: a fé discreta, o modo comedido, a genialidade tímida que reverencia o passado enquanto inventa caminhos. Sua música abre um espaço de reverberação onde se encontram ancestralidades múltiplas. É o Brasil possível, quando o íntimo encontra o universal.
Enquanto comemoramos Milton, o país encara mais uma tragédia no Rio de Janeiro. Quando vidas se apagam assim, inclusive de agentes do Estado, a derrota é coletiva. O que se revela ali, além da crueza do crime é a falência de mediações que deveriam proteger a vida. Entre omissão e espetáculo, falta planejamento e coordenação.
A tragédia se agrava quando versões correm à frente dos fatos. Antes de qualquer análise mais aprofundada, setores da direita apressaram-se em defender a operação e afirmar que “só morreram bandidos”. Ao longo do dia, as autoridades atualizaram os números de mortos e feridos, revelando um quadro bem mais complexo. No sentido oposto, setores da esquerda condenaram a ação de imediato, também sem dados, relatórios ou perícia. É o retrato do nosso tempo: primeiro a versão, depois os fatos, quando deveria ser o contrário.
Nem absolvição automática nem condenação de rotina: primeiro os dados, depois as leituras políticas. Precisamos, definitivamente, de uma estratégia de país: cooperação federativa, inteligência integrada e transparência sobre as operações, com respostas de curto, médio e longo prazos. Chega de um ente culpar o outro enquanto o crime recruta, lucra e intimida; a sociedade é que fica refém. Há poucas semanas, perguntei aqui nesta mesma coluna se o Brasil caminha para se tornar um narco-Estado; hoje a pergunta se torna ainda mais angustiosa. Por ora, faltam-me respostas; sobram-me perguntas e ansiedades.
Entre os ruídos apressados, há verdades que não convém perder de vista:
- Nas últimas décadas, a política de segurança tem falhado em conter a expansão territorial das facções; ações episódicas, sem presença pública permanente, não consolidam ganhos.
- PCC e Comando Vermelho transnacionalizaram redes e mantêm ramificações no exterior; sem cooperação internacional efetiva, polícia e justiça trabalham de olhos vendados.
- Segurança pública não se faz com torcida nem com inflamabilidade. Menos estardalhaço, mais responsabilidade.
- As experiências bem-sucedidas convergem: estrangular finanças e logística do crime de modo contínuo (dinheiro, armas, insumos, rotas) é mais eficaz do que “operações-espetáculo”.
- Proteger vidas é inegociável: planejamento, equipamento e protocolos que resguardem agentes e civis, e ocupação perene de territórios com serviços públicos. Há iniciativas recentes, mas ainda tímidas e intermitentes.
- Eficiência não se mede por contagem de corpos nem por manchetes. Operação tem de virar presença do Estado nos territórios com excelência de políticas públicas.
- A Constituição é clara (art. 144): segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos. Isso se traduz em cooperação federativa, inteligência integrada e participação comunitária.
Operações letais podem ser necessárias em situações extremas, mas desarticular a cadeia de comando das facções é o mais indispensável. Eficácia, todavia, não se mede por manchete: mede-se por indicadores verificáveis. Quantos mandados foram cumpridos e quantos não foram? Quantas prisões qualificadas houve? Que armas e drogas foram apreendidas? Quais bens e contas foram bloqueados? Por que se adotou este desenho tático e não outro? Sem respostas claras, não há avaliação séria de efetividade, nem aprendizado.
Além das mortes, a verdade também foi ferida. Em tempos de versões instantâneas, ela acaba assassinada por precipitações, interesses e a mais rasteira politicagem. É precisamente por isso que, antes de absolvições automáticas ou condenações rápidas, é preciso respirar, reunir dados, periciar e então formar juízo e decidir.
O fato é que essa crise é antiga e fruto de omissões estruturais e condescendências criminosas. No curto prazo, é preciso estabilizar territórios, realizar operações com alvo e mandados definidos. Em médio e longo prazos, cabe a desarticulação do crime organizado: investigação perene, asfixia financeira, controle de armas e fronteiras, prisões com execução penal efetiva. E, sobretudo, Estado presente de forma contínua nos territórios: educação, saúde, urbanismo e habitação digna, além de oportunidades de trabalho. Sem isso, qualquer “operação” vira mero espetáculo, apenas mais um intervalo entre duas violências e o velho e lastimável uso da violência como trampolim político.
No meio de tudo isso, lembro-me de “San Vicente”, potente música de Milton com letra do genial Fernando Brant. Esses versos nasceram sob o peso das ditaduras do nosso continente e virou uma espécie de oração laica para tempos de medo. Ele canta em entonação divina:
As horas não se contavam
E o que era negro anoiteceu
Enquanto se esperava
Eu estava em San Vicente
Enquanto acontecia
Eu estava em San Vicente
Coração americano
Um sabor de vidro e corte
Está dito o que sentimos agora: um país ferido, cortado pela violência aterradora, pelos desmandos políticos que atravessam os séculos, pelas desigualdades estruturais, pela incerteza no horizonte. Eu sei que logo virá a esperança porque ela não falha nunca, mas agora o gosto é amargo, de vidro e corte. Ainda bem que há Milton Nascimento e sua voz a nos consolar diante de tudo isso.