Outro dia, Pedro Leão e eu conversávamos sobre os tempos difíceis da política, no Brasil e no mundo. Para “mostrar valor”, líderes políticos, de uns anos para cá, veem-se impelidos a gravar dancinhas patéticas, multiplicar aparições esdrúxulas e gritar com histeria e ódio. É preciso “lacrar” a qualquer custo. As métricas de engajamento passaram a ditar o ritmo, corroendo a governança e o projeto de país. O imediatismo reduz o discurso a clipes milimetricamente editados e transforma o ato de governar em espetáculo tragicômico; planos cederam lugar à performance instagramável. Diagnóstico duro, sim. Como dizem meus amigos espanhóis: ¡Así es!
Diante desse quadro, perguntamo-nos se hoje haveria espaço para o surgimento de Tancredo Neves ou de Juscelino Kubitschek, estadistas, com “E” maiúsculo. Concluímos que provavelmente não. Tancredo talvez nem alcançasse uma cadeira de vereador em São João del-Rei; com sorte, ficaria na suplência e só assumiria se um influenciador abrisse a terceira vaga ou se algum eleito fosse para uma secretaria municipal. Juscelino talvez sequer fosse cogitado para chefe de gabinete, seguindo entre Belo Horizonte e Diamantina, no consultório. Um misto de comicidade com constatação trágica.
Está em extinção a política tradicionalmente feita em Minas Gerais, que, embora traga traços universais — respeito, diálogo como pressuposto democrático e civilizatório, elegância de caráter —, ganhou contornos próprios com a mineiridade: a negativa que afirma e a assertividade que não fere. É um modo que evita estigmatizar adversários, concilia sem renunciar a princípios, sustenta conteúdo firme com forma elegante. Ouve antes de decidir, costura sem humilhar, escolhe o tempo certo. Não se rende a clipes, prefere entregar estabilidade, previsibilidade e sentido de país.
Atribui-se a Tancredo a frase: “Mineiro só vai para a mesa de reunião quando está tudo decidido.” Decidir, em Minas, conjuga diálogo, escuta ativa, inteligência emocional e moderação. Nosso Estado é chão de moderação e de articulação. E não se confunda: não é morosidade; é respeito ao tempo, ao outro e à ordem das coisas: ouvir, sondar, costurar e então decidir.
Por falar nisso, há alguns meses Gabriel Dias e eu decidimos escrever um livro sobre “a arte mineira de fazer política”. Queremos ouvir veteranos da vida pública mineira, muitos octogenários, para captar um ethos de diplomacia com propósito, reserva que protege a negociação sem disfarçar o conteúdo, conciliação com princípios, sobriedade, paciência estratégica e discrição elegante. Não é culto ao passado, é extração de aprendizagens para o presente. A inspiração do título é o homônimo da obra de Itamar de Oliveira, Hélio Garcia: A arte mineira de fazer política.
A mineiridade política não surgiu do nada. A Inconfidência, no século XVIII, forjou um vocabulário de liberdade: da derrama à forca de 1792, Tiradentes deixou a lição de coragem cívica e propósito. A ideia de que política pede sonho e que enfrentar o arbítrio é dever ético nasceu ali. Também é justo lembrar que esse vocabulário da liberdade tem nome de mulher. Bárbara Heliodora, nas Minas setecentistas, manteve acesa a chama cívica quando quase tudo desabava, prova de que coragem e sobriedade podem andar juntas.
Quase um século depois, Teófilo Ottoni, liberal e republicano precoce, defendia a política como diálogo civil, não mando. No Astro de Minas, em 1832, assumiu a liberdade de imprensa como compromisso. Na Regência, advogou autonomia provincial para fortalecer liberdades, um traço persistente da cultura política mineira.
Essa vocação reapareceu em 1842. O levante em Minas e São Paulo buscou preservar a Constituição de 1824 em meio ao conflito entre conservadores e liberais. Em Minas, ficou a lição: transformar conflito em debate por direitos.
Se o “café com leite” parecia garantir revezamento entre elites, a ruptura decisiva de 1930 veio de Minas, que rompeu com a candidatura oficial, articulou-se com gaúchos e paraibanos na Aliança Liberal e levou à cena voto secreto, Justiça Eleitoral e anistia. Quadros mineiros deram lastro à transição, alçando Vargas ao poder, encerrando a República Velha e abrindo reformas sem vendeta.
Treze anos depois, sob o Estado Novo, o Manifesto dos Mineiros (1943) ergueu a voz contra o arbítrio varguista. Juristas e intelectuais invocaram o “apego às liberdades políticas e civis” e pediram a restauração democrática. Moderação, aqui, foi resistência organizada ao autoritarismo.
Juscelino Kubitschek deu rosto ao lado otimista dessa tradição. Após experiências em Belo Horizonte e no governo de Minas, venceu em 1955 com “cinquenta anos em cinco” e, no Planalto, traduziu a promessa no Plano de Metas: energia, transportes e indústria de base, com educação e alimentação como suportes, Brasília como síntese integradora. Atraiu indústria, redesenhou infraestrutura. Otimismo como coragem prática: decidiu sob críticas e entregou um país mais integrado e autoconfiante.
Se JK deu horizonte ao desenvolvimento, Tancredo cuidou da travessia política. Arquétipo da conciliação com propósito, manteve firmeza sem estridência; ele e Magalhães Pinto alternaram voz e silêncio quando o interesse público pedia. Na transição de 1984–1985, Tancredo articulou a Aliança Democrática, aproximou MDB e dissidentes do regime e construiu a maioria que encerrou o ciclo autoritário. Ceder no acessório para preservar o essencial: transigir sem revanchismo, costurar o futuro comum.
Aureliano Chaves, vice de Figueiredo, integra a linhagem. Nomeado governador em 1975, aproximou-se das correntes pelas Diretas e articulou a Aliança Liberal que levou à candidatura de Tancredo. Mineiro de voz baixa e gesto firme, pavimentou a transição sem destruir pontes.
Pós-redemocratização, Itamar Franco mostrou que moderação é sinônimo decência. Em 1992, convocou os partidos políticos, cobrou governabilidade e, se preciso, ofereceu até a sua renúncia. A sobriedade foi decisiva para a estabilidade que viabilizou o Plano Real. Firme, sem estridência. No tempo recente, Cármen Lúcia resume essa ética de sobriedade e firmeza. Mineira das Gerais, professora da PUC Minas, levou à cúpula do Judiciário a defesa serena e inflexível do Estado de Direito, lembrando que autoridade democrática se exerce sem grito e sem espetáculo, mas com inarredável compromisso com o interesse público.
Seria possível citar muitos outros mineiros e mineiras que adensam essa linhagem ao lado dos aqui já citados, do século XVIII ao XXI: na Inconfidência, Cláudio Manuel da Costa, os padres Toledo e Rolim, José Álvares Maciel e Hipólita Jacinta Teixeira de Melo; na Primeira República, Afonso Pena e João Pinheiro; na virada de 1930, Antônio Carlos, Olegário Maciel e, em seguida, Gustavo Capanema; no pós-1945, Milton Campos, Edgar da Mata Machado e Pedro Aleixo; anos 1950–60, Bias Fortes, José Maria Alkmin, Afonso Arinos de Melo Franco e Victor Nunes Leal; finais do século XX e início do XXI, Hélio Garcia e José Alencar. Entre tantos outros, estes são apenas alguns exemplos icônicos; a lista não se pretende exaustiva – e, antes que eu me alongue, o Alex Araújo me lembra: olha o deadline e cuidado com o limite de caracteres!
Então, por que a virtude virou vício? Quando diálogo passou a soar como indecisão e moderação, como fraqueza? Porque a política foi convertida em espetáculo. A arte do convencimento cedeu à performance; o debate público, ao imediatismo das redes. No turbilhão de TikTok e reels, a cadência mineira (gestos discretos, articulações silenciosas, confiança que leva tempo) parece antiquada. Talvez por isso mesmo seja a forma mais subversiva de resistência neste segundo quarto do século XXI.
É bom dizer que a prudência não é covardia. Ao contrário. A coragem cívica de Minas nunca faltou ao Brasil. De 1842 a JK e Brasília; de Tancredo à transição; de Itamar ao Real; de Aureliano à costura democrática, o traço comum é atuar com firmeza sem estridência. O Manifesto dos Mineiros segue atual: discutir, amar a liberdade, reivindicar direitos. Moderação não é neutralidade; é compromisso com a democracia.
O desafio hoje é traduzir essa tradição num mundo saturado de ruído: falar com firmeza sem raiva; defender ideais sem caricaturas; construir consensos sem abdicar da crítica. Como diz o amigo Márcio Lacerda, “os tempos políticos atuais são irracionalmente difíceis, Diego”. Eu sei, Marcio, e, parafraseando Rosa, digo que em nossos tempos “viver é perigoso”; fazer política racionalmente, mais perigoso ainda. Polarizar é fácil; tiktokear também. Difícil mesmo é fazer Política com “P” maiúsculo: horizonte ampliado, olhar além, país acima das ideologizações inférteis, diálogo franco e maturidade democrática. Que sonho essa Política!
Se é perigoso sonhar, mais perigoso é recusar o sonho. É preferível arriscar e sonhar alto. Se o primeiro compromisso de Minas é com a liberdade, o segundo deve ser com o sonho. Sonhar nos liberta da mediocridade, ou ao menos deveria.