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Alisson Moraes | Tablets e laptops ou cadernos e canetas: para onde vai a escola?

Sem leitura consistente, o debate público empobrece e a cidadania se esvai

Sem leitura consistente, o debate público empobrece e a cidadania se esvai

Esta semana foi difícil escolher um tema para esta coluna. Os 123 anos de JK merecem registro, mas tratei dele aqui no mês passado; o julgamento da intentona golpista já ocupa as manchetes, com análises jurídicas, éticas e políticas por toda parte. Por isso, optei por falar de educação, uma paixão que me acompanha há décadas e que ganhou ainda mais centralidade em minha vida desde que assumi uma sala de aula há três anos.

Em entrevista ao jornal português Público, publicada em 3 de setembro de 2025 em Lisboa, durante a conferência Book 2.0 sobre o futuro do livro e da leitura, o ex-ministro da Educação da Suécia Johan Pehrson foi taxativo: “Fomos ingênuos. Pensámos que quanto mais telas, quanto mais plataformas digitais utilizássemos, melhor sistema educativo teríamos. Estava errado. Estamos a voltar ao que é essencial: papel e caneta, e livros em papel para os mais novos.” Na mesma conversa, ele reforçou a base do argumento: “Tudo o que construímos: a democracia, o Estado de bem-estar social, a ciência, foi com base no que lemos… A leitura torna-nos mais inteligentes; não ficamos tão zangados quando lemos como quando andamos pelas redes sociais.”

Nos anos 1990, a Suécia era referência nas avaliações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico e virou vitrine de reformas: descentralização, liberdade de escolha das famílias e expansão de escolas independentes. A partir dos anos 2000, acelerou-se a digitalização: redes municipais e escolas independentes adotaram programas “1:1” (um dispositivo por aluno) com tablets e laptops, sobretudo no ensino obrigatório; as pré-escolas passaram a usar dispositivos digitais; manuais impressos foram substituídos por versões eletrônicas e plataformas de aprendizagem tornaram-se rotina.

Em 2017, o país formalizou uma estratégia nacional de digitalização para as escolas, consolidando essa aposta. O resultado, porém, não foi o esperado: ao mesmo tempo em que o acesso à tecnologia aumentou, cresceram os relatos de leitura mais superficial, atenção dispersa e perda de tempo útil em sala. Ao longo dos anos 2000 e no início dos anos 2010, os indicadores de aprendizagem deixaram de exibir a mesma vitalidade do período anterior. O PISA, exame internacional com jovens de 15 anos de 81 países, confirma a trajetória de recuo: a Suécia saiu do 10º lugar em leitura (2000) para o 18º (2022), de 11º para 22º em matemática.

A Suécia continua acima da média da OCDE, mas deixou o topo do pelotão em duas áreas. Esses números não provam causalidade entre telas e queda (e seria intelectualmente desonesto afirmar isso), mas enfraquecem a crença de que a digitalização, por si só, é capaz de elevar o desempenho escolar. Eles reforçam a ideia de que leitura consistente e escrita bem treinada seguem como motores da aprendizagem.

Entre 2023 e 2024, a Suécia mudou de estratégia. Instituiu um tempo diário para que as crianças leiam, individualmente e em silêncio, livros físicos nas séries iniciais, retomou o treino de escrita à mão e definiu a meta de um livro por aluno em cada disciplina, com verba específica para recompor acervos e materiais do professor. Em paralelo, reduziu tarefas mediadas por tela no início da escolaridade e valorizou o trabalho de caderno: copiar trechos curtos, reescrever, revisar.

Vamos ver se o próximo PISA confirma a tendência. Enquanto isso, a neurociência oferece uma pista para a volta ao caderno. Estudos recentes indicam que a escrita à mão ativa circuitos neurais mais amplos do que a digitação, o que favorece memória, organização de ideias e consolidação do aprendizado, sobretudo nas idades iniciais. Há debates metodológicos, como deve haver, mas o conjunto de evidências sugere que o traço manual dá lastro ao pensamento em formação.

O ambiente também conta. Desde 2018, a França restringe o uso de celulares nas escolas e, em 2024, testou deixá-los na entrada em diversas unidades. Não resolve tudo, mas reduz distrações e conflitos e devolve tempo de atenção e de conversa presencial. É uma medida de higiene da atenção, um recurso escasso justamente quando se aprende a ler e a escrever.

A escola do século XXI precisa integrar livros, cadernos e tecnologia em uma sequência pedagógica clara. Nos anos iniciais, a ênfase recai em leitura contínua em papel, caligrafia e trabalho de caderno, práticas que consolidam vocabulário, sintaxe, raciocínio e autorregulação. A partir do meio do Ensino Fundamental, os recursos digitais ganham função ampliadora com laboratórios virtuais, programação, visualização de dados e boas plataformas de pesquisa que aprofundam e aplicam o que já se leu e escreveu. O digital agrega valor quando encontra leitores bem formados, com escritas estáveis e capacidade cognitiva.

Paulo Freire lembrava que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Aprender supõe encontro, diálogo, escuta, corpo presente, rascunho e reescrita. A tela pode e deve somar, especialmente em inclusão e reforço, mas não recria sozinha a experiência social do aprender: olhar o colega, esperar a vez, argumentar, rabiscar, corrigir. A escola é também o lugar da sociabilização, e isso se treina no traço das linhas em convivência fraterna e respeitosa.

Ampliando o debate para o Brasil, o cenário se torna ainda mais preocupante, especialmente ao considerarmos a intrínseca relação entre leitura e escrita. Pesquisas nacionais indicam uma queda preocupante no hábito de leitura, que já era baixo: cada vez menos brasileiros se declaram leitores e aumenta o número daqueles que passam meses sem abrir um livro. No plano internacional, os resultados do Brasil em avaliações como o PISA em leitura seguem aquém do desejado, um reflexo direto dessa carência.

Essa fragilidade leitura-escrita se manifesta no persistente e assustador índice de analfabetismo funcional. Dados recentes de pesquisas como a Retratos da Leitura no Brasil e o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), por exemplo, apontam que cerca de 30% da população adulta é considerada analfabeta funcional, ou seja, pessoas que leem e escrevem, mas têm dificuldades para interpretar textos simples e realizar operações cotidianas com números.

Muitos jovens, mesmo com acesso à escolarização, enfrentam o desafio de extrair a ideia central de um texto mediano, comprometendo seu desempenho em todas as outras áreas do conhecimento. Essa não é apenas uma questão escolar; é um fator limitante para o desenvolvimento do país. Nações com maior índice de leitura e escrita constroem melhores consensos, elevam sua produtividade e fortalecem sua democracia.

Ler e escrever ampliam repertório, criam antídotos contra desinformação e reduzem a raiva impulsiva que coloniza as redes sociais. Sem leitura consistente, o debate público empobrece e a cidadania se esvai. A Suécia, que foi ao limite da digitalização, está nos oferecendo esse aprendizado. As crianças de hoje serão médicas, engenheiras, professoras, juízas, jornalistas, prefeitas e gestoras de amanhã. Se queremos um país mais justo, desenvolvido e democrático, precisamos cultivar os leitores agora. Telas? Sim. Mas quem deve conduzir a escola é o livro, o caderno e o professor.

Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.