Ouvindo...

Pressa

‘O homem rebenta de querer tudo de uma vez, querer apenas, sem outro fito senão o de querer, para aproveitar o tempo reduzindo o próximo’

Tempos atuais e a pressa

“Meu velho um dia falou/Com seu jeito de avisar:/Olha, o mar não tem cabelos/Que a gente possa agarrar/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/ É ele quem me carrega/ Como nem fosse levar...”

A bela canção de Paulinho da Viola e letra de Hermínio Bello de Carvalho, Timoneiro (1996), carregada de metáforas, nos fala da vida que não controlamos, em que somos levados pela maré (natureza), pelo destino que chega sem pedir licença. Há no texto uma inversão, não é o homem quem “conduz o barco” (vida), mas ele é conduzido pelo mar, algo maior e incontrolável. O cantor traz essa mensagem com ar de serenidade, aceitação, inclusive propondo deixar-se levar. O problema é quando navegamos pela vida guiados, não só pelo destino, mas pela rotina de repetições cada vez mais acelerada que faz com que o tempo seja sempre insuficiente. João do Rio, há mais de cem anos, portanto numa época muito mais “lenta”, trouxe essa preocupação ao tratar do homem de 1920, o qual, tomado por ocupações cada vez maiores e diante de um “progresso que tudo arrasta”, já não tem tempo de aproveitar a sua própria existência. Na crônica, o dia de um homem comum começa ao acordar “ainda meio escuro por um movimento convulsivo dos colchões e um jato de luz sobre os olhos produzido pelo despertador elétrico do último modelo de um truste pavoroso.

– Caramba! Já seis!”

Em seguida, ele entrega-se à ginástica já “olhando o relógio”, em meio a uma série de notícias catastróficas, desde incêndios, feridos, até o mau funcionamento do Corpo de Bombeiros. Depois, ducha rápida, seguida de “alimentos breves”, “inventado pela sociedade dos Vegetaristas, cuja descoberta principal é a cenoura em confeitos.”

E assim a vida segue consumindo-o, sem que ele perceba, quase numa morte em vida: “Se descansasse?... Mas não pode. É da engrenagem.”

A metáfora da cidade moderna descrita por João do Rio é de uma vida febril, apressada, em que o tempo escorre entre os dedos do sujeito, por uma “ambição desvairada que o faz querer tudo, a terra, o mar, o ar, o céu, os outros astros para explorar, para apanhá-los, para condensá-los na sua algibeira”, em que “o homem rebenta de querer tudo de uma vez, querer apenas, sem outro fito senão o de querer, para aproveitar o tempo reduzindo o próximo”.

Ao fim do dia, ao chegar em casa, ele “cai, arfando, na almofada, os nervos a latejar, as têmporas a bater, na ânsia inconsciente de acabar, de acabar, de acabar, enquanto por todos os lados, em disparada convulsiva, de baixo para cima, de cima para baixo, na terra, por baixo da terra, por cima da terra, furiosamente, milhões de homens disparam na mesma ânsia de fechar o mundo, de não perder o tempo, de ganhar, lucrar, acabar”...

Veja o leitor a força do texto e sua atualidade ao retratar o estado de permanente cansaço da sociedade moderna que nos arrasta para a correria em busca do sucesso, do dinheiro, do reconhecimento, enquanto quase não nos sobra tempo de ser, de viver. A vida, transformada em performance infinita, sequer nos causa estranhamento por apenas existir. Ao nos defrontarmos, imersos e isolados, cheios de informações que nos aportam rapidamente, habitados pelas telas e promessas de felicidades instantâneas, mas futuras, acabamos não tendo (ou não sendo) nada. E quando nos damos conta, as horas perderam seu relógio, enquanto caminhávamos placidamente em meio ao barulho e à pressa que nos impede até de olhar para o outro e enxergar a virtude que nele existe. Nessa turbulência da “vida corrida”, nem aproveitamos as nossas conquistas e planos pelos quais lutamos por tanto tempo, pois já há um próximo desafio a nos rodear.

Interessante que, Antonio Prata, em 2010, fez a sua versão do homem de 2020, portanto 100 anos depois do texto que compartilhamos. Nele, o autor cita o historiador Eric Hobsbawm, para quem a dicotomia noite e dia se dissolveu diante da hiper-sociabilidade online das exigências do mercado global. Conforme o estudioso, “o tempo segue seu fluxo, sem interrupções, como as informações que cruzam o globo por ondas e impulsos elétricos. (...) A hora do sono, como a hora das refeições, torna-se assim decisão de foro íntimo: aurora e crepúsculo não são mais início e fim de coisa alguma, a não ser para agricultores orgânicos e engenheiros dedicados à energia solar”.

Em tom bastante irônico, a crônica termina com um pedido de desculpas:

“- E, agora, licença, são duas da manhã e prometi que às três e meia iria ensinar minha mãe a fazer a barba. Será sua primeira vez e, com essas novas Gilettes Mach XII, a laser, todo cuidado é pouco”

Antônio Prata reforça a ideia de João do Rio ao tratar da ilusão da sociedade moderna, em que a vida é espectadora de si mesma, pois, dominados pelos artigos de consumo de massa da sociedade do espetáculo e do empobrecimento do humano, sem perceber, somos privados da lucidez, do livre-arbítrio, diante das “novidades”, do desejo compulsivo do consumo, em que a “necessidade” é a rainha e senhora da vida pós-moderna. Nesse turbilhão da modernidade, em que corremos de um compromisso para o outro, como marionetes compulsivas pelo consumo e pela pressa, somos triturados pela rotina e sua máquina da pressa.

É isso, caro leitor, a modernidade nos ofereceu muitas opções, mas nos tolheu o bem mais precioso: o tempo. Não sorvê-lo em goles apressados é resgatar a vida do automatismo.

Ops. A morte de Luiz Fernando Veríssimo trouxe-me ainda mais forte essa ideia da modernidade como máquina de esquecimento. Um autor de tamanha grandeza, tão lido nos jornais durante tantos anos, no final de sua vida, ao deixar de escrever e publicar, sumiu um pouco do “radar”. A sua morte, de certa forma, freou essa engrenagem por um instante, pois nos últimos dias ele foi muito comentado e suas citações pulularam por toda a parte. Seria a velha ideia do Bruxo do Cosme Velho, “Está morto: podemos elogiá-lo à vontade”, em “O Empréstimo”? Acho que não, pois o reconhecimento veio do grande público, fosse das academias e de suas longas e enfadonhas solenidades, eu até reconheceria, pois ele, assim como seu pai Érico Veríssimo, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato, Clarice Lispector e tantos outros jamais integrou a Academia Brasileira de Letras e afins. Uma hora volto a esse tema, prometo.

Ops. Também tenho cá meus textos preferidos do Veríssimo. Em 1982, ele publicou “Como na Argentina”, em que tratou da dificuldade para eliminar um corpo, em oposição à facilidade para tirar uma vida. Há, no texto, uma forte denúncia da banalização da vida e do esvaziamento de seu valor. Nada mais atual, sobretudo diante do nosso silêncio perante tantas mortes e genocídios pelo mundo:

“Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo, como o lixo. Um dos problemas desta civilização: o que fazer com o próprio lixo. As carcaças de automóveis, as latas de cerveja, os restos de matanças. O corpo boia. O corpo vai dar na praia. O corpo brota da terra, como na Argentina. O que fazer com ele? O corpo é como o lixo atômico. Fica vivo. O corpo é como o plástico. Não desintegra. A carne apodrece e ficam os ossos. Forno crematório não resolve. Ficam os dentes, ficam as cinzas. Fica a memória. Ficam as mães.” Como em Gaza, na Ucrânia e nas periferias do nosso Brasil...

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.