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Alisson Moraes | Brasil, um Narco-Estado?

Narco-Estado é o estágio em que o narcotráfico e estruturas criminosas capturam ou condicionam partes relevantes do poder público

Ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes foi assassinado por bandidos do PCC

A execução do ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, na noite de 15 de setembro, foi terrível, algo absolutamente espantoso. Um servidor que dedicou a vida ao enfrentamento das facções criminosas foi emboscado e metralhado em plena via pública, no litoral paulista, diante de testemunhas atônitas. Rajadas sucessivas, carro cravado de balas, a mensagem da barbaridade foi clara. Calaram pela força quem ousou enfrentar a criminalidade. Quando o crime manda recado a fuzil, a resposta precisa ser muito firme, contínua e sem qualquer resignação.

Esse homicídio me deixou mal. Muito mal mesmo. Porque se tratou de um ataque contra o Estado de Direito, contra a ordem, contra o próprio regime democrático. Não há democracia quando agentes públicos viram alvos de bandidos, quando o medo pauta as rotinas, quando bairros, estradas e portos se transformam em corredores logísticos de economias ilegais. Democracia é previsibilidade, regra e confiança. O crime organizado corrói tudo isso.

Logo após o assassinato de Ruy, o promotor Lincoln Gakiya, referência no combate ao PCC, disse em entrevista algo tão verdadeiro quanto amedrontador. Se nada for feito com escala e estratégia, o Brasil pode se transformar em um Narco-Estado. Ele fala a partir de décadas de investigação das facções, que deixaram de ser quadrilhas difusas para operar como empresas criminosas com tentáculos no território, nas finanças e nas cadeias de suprimento.

Narco-Estado é o estágio em que o narcotráfico e estruturas criminosas capturam ou condicionam partes relevantes do poder público. Compra de proteção, infiltração em contratos, influência sobre decisões, distorção de regras por dentro. O nome vem do motor econômico que sustenta essa captura, o mercado ilegal de drogas, com logística e dinheiro suficientes para corromper instituições fragilizadas. Ainda não estamos lá. Mas a pressão das facções sobre territórios, economias e instituições já é suficiente para ferir o Estado de Direito. A execução de um ex-delegado-geral é um alerta gravíssimo!

É verdade que os números da segurança pública no Brasil vêm melhorando ao longo dos anos. Os homicídios, por exemplo, têm diminuído consistentemente. Em 2023, foram 45.747 mortes, o equivalente a 21,2 por 100 mil habitantes, a menor taxa em 11 anos. Em 2024, os homicídios dolosos caíram 6,3%, de 37.754 para 35.365. É uma conquista de estado, reflete o trabalho das polícias, do Ministério Público, do Judiciário e de governos que aprenderam com erros e acertos. Mas é bom ressaltar: avanço se protege e se amplia.

Mas essas melhoras estatísticas não significam segurança estrutural. Mercados ilícitos seguem sólidos, a lavagem de dinheiro se sofistica, armas circulam, fronteiras continuam porosas e o sistema prisional ainda permite comando remoto.

Boas práticas internacionais mostram caminhos. A queda de homicídios em Medellín combinou presença qualificada do Estado com urbanismo social e inteligência policial. Em cidades europeias, a descapitalização do crime por meio de confisco ampliado e investigações financeiras reduziu a capacidade de recomposição das máfias. Portos com gestão de risco, escâneres operando de forma contínua, rastreio de contêineres e integração aduaneira fecharam gargalos de exportação de cocaína. Quem vence o crime é menos o discurso e mais a estratégia, com persistência e transparência. O Brasil precisa de união de esforços para vencer o crime, esquecer essa polarização infértil e apostar em políticas de Estado.

Estratégia começa por inteligência. Inteligência policial e financeira. Inteligência integrada entre Polícia Federal, Polícias Civis e Militares, Polícia Penal, Ministério Público, Receita, Banco Central e COAF. Inteligência para identificar chefias, mapear redes, seguir dinheiro, entender rotas, prever movimentações. Lembro muito bem das aulas do mestrado ministradas pelo professor Luiz Flávio Sapori, na PUC Minas. Segurança pública que funciona deve sempre ser guiada por dados, por inteligência e valorização dos profissionais que atuam diretamente na área.

É decisivo valorizar as forças que seguram a linha. Policiais civis e militares, policiais federais, policiais penais, peritos criminais, guardas municipais, analistas de inteligência. Salário digno, carreira protegida, treinamento contínuo, tecnologia adequada, proteção às famílias e protocolos de segurança durante e depois da carreira. Quem protege o Brasil não pode estar desprotegido. Quando a coragem fica sem respaldo, o crime ganha ousadia.

O país já dispõe de planos, forças integradas e operações de fronteira. Tem Ministério Público e Polícia Federal de excelência. Tem quadros nas polícias estaduais com experiência e compromisso. O que precisa é transformar esse patrimônio institucional em política de Estado, com prioridades claras, com metas e obstinação em vencer o crime. Perseguir o dinheiro que alimenta as facções. Fechar a logística criminosa em portos, aeroportos e fronteiras com gestão de risco permanente. Governar o cárcere para quebrar comando remoto e impedir que prisões se tornem centrais de negócios. Rastrear armas e munições de ponta a ponta, com controle efetivo e auditável. Ampliar a cooperação internacional e a troca de informações com países de origem, trânsito e destino.

Nada disso deve ser pauta de ocasião. Segurança pública deve ser prioridade estável das políticas públicas, acima de todos os calendários eleitorais. Metas transparentes, mas com orçamento previsível, cooperação federativa real, avaliação independente e comunicação de resultados inteligível para a sociedade. A política não pode atrapalhar a polícia, ao contrário, tem de viabilizá-la com as melhores condições possíveis.

Em português claro e direto: democracia sem medo exige um Estado sem trégua com a criminalidade.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.