Alisson Moraes | Sobre lobos, borboletas, andorinhas e bestas: o ‘safári humano’ no cerco de Sarajevo

Sonho com um tempo em que barbaridade signifique, como em Drummond, a recusa até mesmo de ferir borboletas e andorinhas

Vista panorâmica da cidade de Sarajevo, na Bósnia

Seria o homem o lobo do próprio homem? “Homo homini lupus”, escreveu Thomas Hobbes no século XVII, retomando a clássica frase do dramaturgo romano Plauto, no século III antes de Cristo. Sempre me pareceu pessimista demais essa ideia de que trazemos a violência na raiz. No entanto, diante do tema desta coluna, é difícil não concordar, ao menos em parte, com o pessimismo de Hobbes, Plauto e tantos outros que enxergaram na história humana uma espantosa capacidade de crueldade.

No início dos anos 1990, enquanto se proclamava o “fim da história” e se celebrava o triunfo definitivo da democracia liberal, uma capital europeia era cercada por quase quatro anos, bombardeada dia após dia, varrida por disparos de atiradores escondidos em janelas e nas montanhas. Sarajevo, encravada no coração do continente que se orgulhava de sua civilização, transformou-se em metáfora cruel dessa contradição: a mesma Europa que discursava sobre direitos humanos assistia, entre um telejornal e outro, a massacres transmitidos em tempo real.

Em meio a esse absurdo, a banda irlandesa U2 compôs, inspirada no cerco, a canção “Miss Sarajevo”, em que a voz de Luciano Pavarotti se sobrepõe à melancolia do rock e pergunta, com delicadeza cortante, o que ainda pode florescer num lugar em que “já não se sabe rezar” e a esperança estava suspensa. A música nasceu do concurso de beleza realizado na cidade sitiada e transformou em melodia uma pergunta brutal: como continuar vivendo, amando, sonhando, se até atravessar a rua pode significar encontrar a morte?

Muitas décadas antes desse cerco, Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior, havia intuído, em poucas linhas, o abismo de que somos capazes. Em “Alguma Poesia”, seu livro de estreia publicado em 1930, ele escreveu o poema mínimo e devastador “Anedota Búlgara”: “Era uma vez um czar naturalista / que caçava homens. / Quando lhe disseram que também se caçam / borboletas e andorinhas, / ficou muito espantado / e achou uma barbaridade”.

A conclusão é forte: o czar fica espantado, acha uma barbaridade caçar borboletas, mas não humanos. À primeira vista, parece só um epigrama quase irônico; lido com atenção, é um mundo inteiro condensado ali. Um governante que considera normal caçar gente, mas se horroriza com a ferida numa borboleta; um poder tão habituado à violência humana que só se escandaliza quando alguém ameaça a sua própria escala de normalidade.

A “anedota” de Drummond, na verdade, não é anedota nenhuma. É um diagnóstico de algo que se repete ao longo da história: a vida humana rebaixada a mero alvo. Foi assim no Congo submetido ao terror colonial de Leopoldo II, onde milhões de pessoas foram tratadas como peça descartável de um empreendimento econômico. Foi assim no nazifascismo europeu, nos campos de extermínio e nas cidades arrasadas da Segunda Guerra Mundial. Foi assim, em 1994, no genocídio de Ruanda, e nas encostas e avenidas da Bósnia.

Entre 1992 e 1996, Sarajevo viveu o cerco mais longo de uma capital europeia na história recente: cerca de 1.425 dias sob fogo cruzado, mais de 11 mil mortos e dezenas de milhares de feridos. As montanhas que cercam a cidade se transformaram em mirantes da morte. Snipers posicionados em prédios altos e colinas atiravam contra quem ousasse atravessar a rua. Um trecho inteiro da capital ganhou o nome de “Sniper Alley”, o beco dos atiradores. Ir ao mercado, buscar água, levar uma criança à escola era correr, por alguns segundos, dentro de uma mira invisível.

Trinta anos depois, a capital Bósnia volta ao noticiário com uma notícia terrivelmente perturbadora. O Ministério Público de Milão abriu uma investigação nesta semana sobre a hipótese de que cidadãos italianos, e outros estrangeiros ricos, tenham pago quantias elevadíssimas para viajar até as posições sérvias nas colinas de Sarajevo e atirar contra civis “por diversão”.

O promotor Alessandro Gobbi conduz um inquérito por homicídio voluntário, agravado por crueldade e motivos abjetos, a partir de uma denúncia do jornalista Ezio Gavazzeni e de relatórios que incluem um documento da ex-prefeita de Sarajevo, Benjamina Karić, mencionando “estrangeiros ricos envolvidos em atividades desumanas” na Bósnia.

Segundo Gavazzeni, que se debruçou sobre o documentário “Sarajevo Safari” (2022) e sobre antigos arquivos de inteligência bósnia, havia verdadeiras excursões de “turistas de guerra” partindo da região de Trieste rumo às colinas que cercam a cidade sitiada. Eles teriam pago entre 80 mil e 100 mil euros para serem escoltados por milícias sérvias até os postos de sniper, onde recebiam armas de longo alcance e, protegidos pela distância, disparavam contra homens, mulheres e crianças.

Há ainda relatos de uma espécie de “tabela de preços” para alvos específicos, com valores extras para quem acertasse crianças. As associações de veteranos sérvios negam com veemência a existência desse “safári humano”, e o próprio Ministério Público ainda está na fase inicial da apuração. Mas o simples fato de uma Promotoria europeia considerar verossímil essa hipótese a ponto de abrir um inquérito já é, por si só, estarrecedor. Confesso que não consigo escrever estas linhas sem, em alguns momentos, interromper a frase e enxugar os olhos: há temas que desafiam a linguagem e a capacidade de racionalizar o mundo.

Jorge Amado, um dos maiores escritores do Brasil, refletiu sobre a impotência da palavra em 1944, quando a Segunda Guerra ainda devastava o planeta. Em texto publicado na Folha da Manhã, escreveu: “Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?”. A pergunta atravessa o tempo e nos alcança agora, quando tentamos escrever sobre Sarajevo e sobre a hipótese de ali ter havido um “safári humano": como falar da beleza da vida e da delicadeza das borboletas enquanto as bestas continuam soltas, mirando corpos humanos por diversão?

Diante disso, é impossível não lembrar de Hannah Arendt e do conceito que ela cunhou ao acompanhar, em 1961, o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém: a banalidade do mal. O mal extremo, para Arendt, não nasce tão somente de monstros caricatos, mas também de gente aparentemente comum que renunciou a pensar e a julgar, que transforma vidas em números, em descarte. Eichmann era o funcionário meticuloso que organizava trens para os campos de extermínio sem se perguntar seriamente quem eram e por que aquelas pessoas embarcavam ali. “Apenas cumpria ordens”, dizia fria e horrendamente. O horror não estava apenas nas ordens que recebia, mas na facilidade com que aceitou desligar a própria consciência.

A banalidade do mal é a banalização da responsabilidade e a recusa da consciência: quando ninguém se reconhecia como autor, todos se diziam apenas peça de um mecanismo maior. As denúncias sobre os “snipers de fim de semana” em Sarajevo, no entanto, são uma mutação ainda mais fria dessa lógica. Não se tratava do funcionário que “apenas cumpria ordens” em nome de um Estado totalitário, mas de homens ricos que, em plena economia de mercado, teriam comprado com cartão de crédito a experiência de matar. Viajavam na sexta, eram recebidos como clientes VIP por milicianos, subiam às posições de tiro, miravam com lunetas sofisticadas, apertavam o gatilho. O mal não era apenas banal e desracionalizado, era o lazer, um pacote de fim de semana.

No domingo à noite, voltavam para casa; na segunda, retomavam a rotina de executivos, profissionais liberais, pais de família. Se Eichmann, na leitura de Arendt, encarnava o mal burocratizado, escondido atrás de formulários e carimbos, aqueles supostos atiradores de aluguel encarnavam algo ainda mais cruel: o mal transformado em entretenimento de luxo, praticado por quem não alegava necessidade, nem medo, nem obediência cega, mas pura vontade. Se as denúncias se confirmarem, o que aconteceu nas colinas da Bósnia não apenas confirma Arendt, como parece ultrapassar o seu diagnóstico: a banalidade do mal encontra a cultura do consumo e desce um degrau a mais, convertendo a morte do outro em produto, em passatempo, em experiência vendável. É a banalidade da banalidade, a crueldade das crueldades, o absurdo dos absurdos. A náusea. O horror. O fim.

De vez em quando sinto que meu pessimismo com a humanidade tem aumentado a cada dia, a cada fato, a cada notícia, a cada diagnóstico, a cada notícia-crime. Como não aumentar, pergunto-me retoricamente, ao ler notícias como esta de um suposto “safári humano” em pleno fim do século XX, após tantas barbáries vividas pela humanidade? Não há filosofia, arte ou transcendência que me faça resignar diante disso. Não há.

Ainda assim, talvez resida aí um último fio de esperança: o fato de que isso ainda nos indigne, nos faça perder o fôlego, nos arranque lágrimas e nos impeça de aceitar sem resistência a crueldade, o mal. Se há algo que nos salva minimamente é justamente a recusa em tomar esses horrores como normais, a disposição de olhar para Sarajevo, e para tantos outros cenários de violência, com horror diante do absurdo.

Sonho com um tempo em que barbaridade signifique, como em Drummond, a recusa até mesmo de ferir borboletas e andorinhas.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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