Ouvindo...

Alisson Moraes | Ciro Gomes no PSDB: o grande teste público

Volta de Gomes ao PSDB tem potencial para dar gás na reorganização do centro reformista e é tentativa de reconectar o partido ao ideário original

Ciro Gomes

A volta de Ciro Gomes ao PSDB tem potencial para dar um gás na reorganização do combalido centro reformista brasileiro e representa uma tentativa de reconectar o partido ao seu ideário original.

O PSDB nasceu da redemocratização com figuras como Afonso Arinos, Bresser Pereira, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, José Serra e Tasso Jereissati. Nos seus melhores momentos, honrou a ambição social-democrata: estabilidade econômica com agenda social. Nos piores, perdeu a identidade, abandonou a social-democracia e se rendeu a um oposicionismo reativo e infértil.

É previsível que alguns adversários ou analistas de ocasião tentem colar em Ciro a pecha de “direitista” ou “entreguista”. Esses rótulos só colam em quem prefere o dogma à evidência. Quatro décadas de vida pública revelam um nacional-desenvolvimentista crítico do neoliberalismo e defensor de um Estado coordenador de investimento. Não demoniza os mercados de capitais, nem os diviniza.

Como chamar de “entreguista” alguém que se alinha às ideias de Mariana Mazzucato, economista ítalo-britânica, professora da University College London (UCL), autora de O Estado Empreendedor e Missão Economia, que demonstra como grandes inovações de nosso tempo (como a internet, o GPS e até o touchscreen) nasceram de investimentos públicos de alto risco e defende um papel estratégico do Estado? É justamente nesta trilha que Ciro se posiciona: Estado indutor, investimento público estratégico, metas e governança para alavancar a produtividade e a reindustrialização com inclusão social e respeito ao meio ambiente. Definitivamente, isso não é ortodoxia neoliberal.

A trajetória partidária do ex-ministro (“trágica”, nas palavras do próprio Ciro) expressa uma busca recorrente por abrigo programático em meio a rearranjos do sistema partidário brasileiro: começa no PDS, passa pelo PMDB e ingressa no PSDB nos anos 1990, período em que governa o Ceará e se projeta nacionalmente, assumindo o Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco, na fase crucial do Plano Real. Em seguida, transita por PPS, PSB e PROS até fixar-se no PDT, em 2015, legenda pela qual concorre à Presidência em 2018 e 2022. Trágica também é a estrutura partidária brasileira, sopa de letrinhas, escassez de identidades e incoerência programática.

Se a vida partidária de Ciro é “trágica”, o histórico de gestor é consistente. Prefeito de Fortaleza (1989–1990), reorganiza serviços básicos e impõe disciplina de caixa; governador do Ceará (1991–1994), aprofunda a reforma administrativa e fiscal iniciada por Tasso Jereissati, realiza projetos estruturantes e amplia a atração de investimentos; à frente da Fazenda (1994), conduz uma etapa delicada da consolidação do Plano Real; na Integração Nacional (2003–2006), lidera a agenda hídrica que resulta na transposição do São Francisco.

O retorno do ex-ministro ao PSDB só se justifica se qualificar a oposição e reorganizar o centro em bases republicanas; não como tática eleitoral, mas como projeto com estratégia: uma agenda ancorada em democracia, responsabilidade fiscal com justiça tributária e investimento social e ambiental; reindustrialização de baixo carbono e inovação; educação básica e técnica de qualidade; saúde e segurança cidadãs; pacto federativo cooperativo para reduzir desigualdades regionais; e proteção da esfera pública em tempos algorítmicos. Sem isso, a filiação é só coreografia eleitoral.

Para que esse programa se materialize, é preciso romper a camisa de força do receituário neoliberal e ordenar prioridades públicas. Isso implica reconhecer seus limites no Brasil (desindustrialização, dependência de commodities, desigualdade persistente e subinvestimento público crônico) e substituí-lo não por estatismo de vitrine, mas por um Estado planejador democrático: que coordene, regule e induza, com transparência e participação social, em cooperação exigente com o setor privado.

Ciro repete essa tese há anos e conhece o tamanho do desafio; se voltar a governar o Ceará, será cobrado por traduzi-la em entregas, ainda que um ente subnacional tenha as suas limitações. O fato é que desde os anos 1990, o neoliberalismo avançou e subordinou a governança e as políticas públicas a seus imperativos; sair do labirinto do Minotauro exigirá o fio de Ariadne: planejamento, estratégia, capacidade de investimento, tecnologia, participação popular, transparência e governança democrática.

Há, ainda, uma tensão inescapável: Ciro tem sido um crítico contundente do tripé macroeconômico (metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário), desenhado e consolidado nos governos Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), e de seus efeitos pró-cíclicos sobre investimento e indústria. Ao retornar ao partido que o formulou e o defendeu, terá de explicitar a sua proposta alternativa.

No Ceará e no plano nacional, a engenharia política pede menos inflamabilidade retórica e mais articulação. Ciro tem a ganhar ao baixar a temperatura e construir pontes. O PSDB tem a ganhar ao transformar gesto em políticas públicas eficientes, coerência entre discurso e voto e capacidade de fazer política para além do calor das redes. A sociedade tem a ganhar quando surge uma alternativa democrática e competente que troca efeito por resultado e promessa por execução.

Ainda é cedo para saber o que essa volta produzirá. Trata-se, no entanto, de um grande teste público. Teste para o PSDB, que precisa sair da apatia e apresentar algo concreto ao país. Teste para Ciro, que precisa trocar beligerância por diálogo e demonstrar capacidade eleitoral e, depois, entregas neste momento conturbado da vida política brasileira. E teste para nós, eleitores e observadores, que precisamos avaliar e cobrar – sem passionalidades ou linchamentos. Afinal de contas, a política não é campo de paixões; é a arena da razão pública. Ao menos, era o que deveria ser.

Leia também

Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.