Há uma frase que a gente ouve muito por aí: “o Brasil deu errado”. Basta alguns minutos nas redes sociais para ver esse bordão repetido à exaustão, misturando a frustração legítima do povo brasileiro com desinformação organizada e um persistente complexo de vira-lata. Pois um estudo inédito do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado nesta semana e assinado pelos pesquisadores Pedro Ferreira de Souza e Marcos Hecksher, foi um verdadeiro banho de água fria nesse coro de derrotistas: entre 1995 e 2024, a renda média mensal por pessoa no Brasil cresceu quase 70% (de R$ 1.191 para R$ 2.015), enquanto pobreza, extrema pobreza e desigualdade caíram aos menores níveis da série histórica. A extrema pobreza recuou de 25% para menos de 5% da população, e o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade, passou de 61,5 para 50,4 pontos.
A pergunta, portanto, não é se melhorou; é outra, mais incômoda e mais interessante: o que fizemos, como país, quando escolhemos melhorar, e o que ainda falta fazer? O estudo “Pobreza e desigualdade no Brasil no curto e no longo prazo”, divulgado nos últimos dias pelo Ipea, faz um raio-X da distribuição de renda entre 1995 e 2024 a partir das pesquisas domiciliares do IBGE. O retrato é impressionante, mas longe de ser uma linha reta: os maiores avanços se concentram em dois períodos muito nítidos, de 2003 a 2014 e de 2021 a 2024, separados por uma década de crise, tropeços e oportunidades desperdiçadas.
O primeiro grande ciclo de redução da pobreza e da desigualdade, entre 2003 e 2014, não foi um milagre. Renda, emprego e salário mínimo cresceram por 11 anos seguidos num arranjo que combinou expansão econômica, geração de empregos formais, valorização do piso salarial e construção de um sistema de transferências mais estruturado. Foi quando o Bolsa Família se consolidou, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) se expandiu e milhões de trabalhadores deixaram a informalidade. É fato que havia vento externo a favor, com o boom das commodities e a China comprando soja e minério, mas bonança internacional, sozinha, nunca distribui renda; ao contrário, costuma concentrar. No Brasil, a maré só levantou os barcos de baixo porque houve escolhas políticas: reajuste do salário mínimo, ampliação de direitos e um Estado que, com todas as contradições, decidiu olhar para o andar de baixo.
Esse caminho foi interrompido pela recessão a partir de 2014, seguida de estagnação, desemprego e aperto fiscal. Desigualdade e pobreza voltaram a subir, e a sensação de “fim de linha” se espalhou. A pandemia parecia coroar uma década perdida. Foi nesse contexto que o país voltou a testar, em escala inédita, o poder das transferências de renda: auxílio emergencial, programas transitórios e, depois, a recriação do Bolsa Família, agora com outro patamar orçamentário. Entre 2019 e 2024, as transferências do Bolsa Família e do BPC cresceram 135% em termos reais, e o gasto com esses programas passou de 1,2% para 2,3% do PIB. Não é pouca coisa para um país que sempre tratou política social como “gasto”, e não como investimento civilizatório.
Quando os pesquisadores decompõem a melhora recente, o resultado desmonta alguns discursos fáceis. Entre 2021 e 2024, mercado de trabalho e programas sociais aparecem quase lado a lado na explicação da queda da desigualdade e da extrema pobreza: perto da metade da melhora vem da renda do trabalho, e uma parcela muito próxima das transferências. Para a extrema pobreza, o peso dos programas sociais é ainda maior. Traduzindo: não é verdade que “é tudo Bolsa Família”, nem que “é só mercado”. O que funciona é a combinação de renda do trabalho com proteção social. Quando essas duas pernas caminham juntas, o Brasil avança; quando uma delas é chutada, a engrenagem emperra e quem cai é sempre o mesmo lado da sociedade: o mais vulnerável.
Isso é especialmente relevante num momento em que o Bolsa Família volta a ser atacado como “programa caro” e “desestimulador do trabalho”. Hoje, o benefício mínimo é de R$ 600, com adicionais por criança e adolescente, e o programa atende cerca de 20 milhões de famílias, com um orçamento em torno de R$ 158 bilhões em 2025, menos de um sexto do que se gasta com Previdência e muito abaixo do custo anual dos juros da dívida pública. Pesquisadores como Pedro Ferreira de Souza, um dos principais estudiosos da desigualdade no país, lembram que, por muitos anos, o verdadeiro gargalo do Bolsa Família foi justamente o tamanho do orçamento. Quando o programa finalmente ganhou escala, a dúvida passou a ser se ele continuaria bem focalizado. A resposta dos dados é inequívoca: o Brasil aprendeu a fazer política de transferência de renda, e o retorno em redução da pobreza e da extrema pobreza é maior do que o custo financeiro do programa.
Seria um erro, porém, transformar esse retrato em conto de fadas. O Brasil continua entre os países mais desiguais do mundo: uma minoria concentra renda, patrimônio e oportunidades, enquanto persistem abismos entre regiões, raças e gêneros. O 1% mais rico segue se apropriando de uma parcela desproporcional da renda nacional e a renda média de pessoas brancas permanece muito acima da de pessoas negras, sobretudo mulheres negras. Além disso, o ciclo recente de expansão do Bolsa Família não é infinito: o espaço fiscal para ampliar o programa é limitado, e o desemprego já se encontra em patamares historicamente baixos. Isso significa que, daqui para frente, será cada vez mais decisivo elevar a produtividade da economia, com investimento consistente em educação, infraestrutura, inovação e numa transição ecológica capaz de gerar empregos de qualidade.
Os próprios autores do estudo lembram que os períodos em que o Brasil mais avançou socialmente coincidem com momentos em que o Estado ousou usar a política fiscal de forma mais expansionista, sustentando ao mesmo tempo investimentos e proteção social. O desafio agora é encontrar um ponto de equilíbrio que não repita o roteiro conhecido: aperto fiscal exagerado, recessão, desemprego e a velha ladainha de que “não há alternativa” para um país estruturalmente desigual. Juros persistentemente altos, combinados com um sistema tributário que poupa o topo e cobra pesado no consumo dos mais pobres, formam uma máquina de produzir desigualdade em série. A reforma do Imposto de Renda e a nova tributação sobre o consumo podem ser passos modestos, mas importantes, na direção certa, desde que não sejam esvaziados pela politicagem de sempre.
O fato de reconhecer esses avanços não significa romantizar o país. O Brasil continua a conviver com uma corrupção endêmica, níveis de violência inaceitáveis, uma burocracia que muitas vezes asfixia o cidadão comum, serviços públicos desiguais e um racismo estrutural que organiza silenciosamente as oportunidades. Tudo isso é verdade. Mas também é verdade que, ao comparar o Brasil com trajetórias como as de Singapura ou Coreia do Sul, é preciso lembrar que partimos de um ponto histórico completamente distinto: uma longa escravidão, uma República instável, ciclos autoritários recorrentes e uma industrialização tardia. Não costumo usar o “processo histórico” para justificar o presente, porque ele não absolve o atraso; ele serve, isso sim, para explicá-lo e, a partir daí, permitir que a sociedade supere complexos, preconceitos e o velho vira-latismo. Se existe um país no Sul do mundo que reúne condições concretas para ser desenvolvido, democrático e ambientalmente responsável, esse país é o Brasil, desde que tenha coragem de enfrentar seus nós históricos em vez de apenas repetir que “deu errado”.
No fim das contas, esses números do Ipea lembram uma coisa que a gente sabe, mas evita encarar: desigualdade não é castigo nem destino, é fruto de escolhas reiteradas ao longo do tempo. Os dados de 2024 não são convite à euforia; são um exame de consciência coletiva: vamos tratá-los como um sobressalto passageiro ou como ponto de partida de um projeto de país que leva a sério a ideia de crescer, gerar riqueza, distribuir renda e reduzir desigualdades?