Alisson Moraes | Retrospectivas musicais de 2025: cheguei aos 82 anos ouvindo MPB, Clube da Esquina e canto gregoriano

Entre as músicas, o primeiro lugar ficou com ‘As Canções Que Você Fez pra Mim’, composta por Roberto e Erasmo Carlos nos anos 1960

A musicalidade

Começou aquele período do ano em que as redes sociais se transformam num grande painel de retrospectivas musicais. É playlist para todo lado, ranking de artistas, porcentagem de gêneros, horas de audição e, agora, até uma tal “idade musical”. As plataformas despejam números e a gente converte em orgulho, constrangimento ou piada. Depois de um 2025 pesado em tantos aspectos, confesso: tenho me permitido divertir com essa enxurrada colorida de listas que invade os stories e, por alguns dias, troca as ofensas costumeiras das redes por arranjos, vozes e lembranças.

Por alguns dias, a internet exala menos ódio e se suaviza em música. Eu, que tenho usado este espaço para falar de política, crise da democracia e tantas questões econômicas e sociais, aproveito a trégua. Hoje peço licença ao leitor para afrouxar um pouco o nó da gravata e tratar de um tema aparentemente leve, mas cheio de pistas sobre quem somos: as nossas retrospectivas musicais de fim de ano. Fui conferir as minhas e, para espanto de ninguém, o primeiro lugar ficou com Maria Bethânia. Ela é a campeã recorrente da minha discoteca afetiva.

Na minha retrospectiva pessoal, nenhuma surpresa no topo: aparece Maria Bethânia. Ela é a campeã permanente da minha discoteca afetiva, a voz que atravessa fases boas e ruins com a mesma autoridade serena. Logo em seguida, aí sim vieram as surpresas. Surgiu a nova geração da MPB com Rubel, num lugar que eu não teria previsto, seguido de Zeca Pagodinho, que talvez esteja ali por culpa da distância do Brasil e da vontade de me reconectar da forma mais original possível: pelo samba, pela malandragem poética, por essa brasilidade que sorri enquanto atravessa as dificuldades da existência. Na sequência, nenhuma novidade com Caetano Veloso, trilha sonora de tantas idades que já vivi; e, fechando o grupo, outra surpresa, Xande de Pilares. Desconfio que tanto ele quanto Zeca apareçam por isso mesmo: quando a saudade aperta, eu recorro a um Brasil que desperta inteiro em alguns minutos de música.

Entre as músicas, o primeiro lugar ficou com “As Canções Que Você Fez pra Mim”, composta por Roberto e Erasmo Carlos nos anos 1960, e imortalizada nos anos 1990 na voz de Maria Bethânia. Nenhuma grande surpresa ser a minha canção mais ouvida do ano porque é um clássico da MPB, é verdade, mas o dado sugere uma certa melancolia que não vivi neste ano. Eu não estava nem um pouco dilacerado quanto a estatística faz crer, mas as retrospectivas não trabalham com nuances; confundem apego estético com desespero amoroso.

A música, ao contrário do que imaginam os algoritmos, não nos revela por completo. Ela entrega um pedaço da alma, mas edita o resto. Ainda bem: se a planilha emocional fosse tão objetiva quanto o gráfico, a vida ficaria insuportavelmente literal.

De volta a canção primaz, o que me prende nessa canção é a coragem do eu lírico em assumir a perda de forma frontal, sem ironia defensiva, sem cinismo. É um sujeito que olha para o mundo “diferente”, carrega uma “alegria triste” e admite que agora chora sozinho, sem a pessoa que inspirou aquelas músicas. Em tempos em que quase tudo vira meme instantâneo, essa disposição de nomear a dor com elegância é raridade. Hoje, a perda amorosa, pelo que vejo, escorrega para dois extremos: ou vira uma caricatura brega, pronta para os vídeos curtos, ou se dissolve num sentimentalismo raso, sem a densidade poética de quem se dá ao trabalho de elaborar o luto.

A canção de Roberto, Erasmo e a voz Bethânia transformam o sofrimento em forma, sem pedir desculpas por isso. Há ainda a história por trás da própria composição, que acrescenta outra camada a esse retrato da perda. Escrita por Roberto Carlos e Erasmo Carlos no fim dos anos 1960, a música é associada ao romance conturbado entre Dedé Marquez, então ligado à banda de Roberto, e a cantora Martinha, estrela da Jovem Guarda; um relacionamento que não resistiu à pressão familiar.

No outro aplicativo, zero surpresa também ao descobrir que o meu álbum mais ouvido de 2025 foi “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento e Lô Borges. A mineiridade nunca me faltou e nunca me faltará! Se os algoritmos quisessem desenhar meu mapa afetivo, ele passaria inevitavelmente por uma esquina de Minas com o mar da Bahia e um bar carioca.

O dado mais divertido veio com a tal “idade musical”. De acordo com a retrospectiva, meus ouvidos têm 82 anos, porque passaram boa parte do tempo estacionados no fim dos anos 1950. Meus gêneros mais ouvidos formam um pequeno mapa afetivo: cool jazz, MPB, blues elétrico, samba e canto gregoriano. Em termos geográficos, é como se fosse uma alma que sai de Belo Horizonte, faz escala em Nova York, se recolhe por uns instantes num mosteiro medieval e termina a noite num botequim barulhento, com o copo na mão e a filosofia botecando na companhia da sociologia, da gestão pública e do futebol – que quarteto!

Achei que estava exagerando no saudosismo, até descobrir um amigo filósofo, mais jovem do que eu, com 89 anos de “idade musical”. Enquanto muita gente faz terapia para enfrentar as crises do presente, nós dois marcamos consulta com os discos antigos e as belíssimas vozes do passado, que nunca envelhecem de verdade porque são universais. É uma forma particular de “velhice precoce”: em vez de reclamar do mundo moderno, a gente apenas volta o ponteiro da vitrola e deixa que o tempo corra um pouco mais devagar dentro do fone de ouvido.

A verdade é que essas retrospectivas dizem muito sobre nós. Não apenas sobre gosto, mas sobre memória. Quando a tela informa que você passou centenas de minutos com Bethânia, Chico, Milton ou Caetano, não está registrando só uma preferência estética; está apontando para quantas vezes, em dias difíceis, você pediu socorro àquelas vozes e, nos dias bons, chamou-as para brindar com você. Neste ano, por um milagre estatístico, Chico Buarque não apareceu na minha retrospectiva musical depois de figurar por anos a fio. Não é que ele tenha saído da minha vida; apenas cedeu espaço, por alguns meses, a outras formas de lidar com o mesmo mundo complicado de sempre.

Cada repetição de uma canção é um jeito discreto de dizer: “isso aqui está me ajudando a atravessar o dia”. Luis Fernando Verissimo escreveu que, “tanto na música quanto na literatura, o melhor momento é o do sentimento de que se está fazendo uma coisa boa”. Essa turma fez – e continua fazendo – muita coisa boa, a ponto de desmentir a tal ideia de “idade musical”. Como diz o amigo João Tavares: “músicas não envelhecem; quem envelhece são as cabeças que as esquecem”. Por isso Bethânia, Milton, Caetano e tantos outros soem, ao mesmo tempo, antigos e absolutamente contemporâneos: não pertencem a um ano específico, mas à nossa história social e pessoal e revelam uma necessidade: há momentos em que nós e o país precisam desesperadamente deles.

Essas retrospectivas nos comovem justamente porque revelam que, ao menos nesse momento da vida, fizemos boas escolhas de companhia. É curioso, porque passo boa parte do tempo criticando algoritmos. Eles moldam bolhas, alimentam desinformação, radicalizam opiniões, lucram com a nossa atenção sem pudor. Mas, nesse território específico da música, às vezes eles trabalham a nosso favor. Foi um desses algoritmos que colocou Rubel ao lado de Zeca Pagodinho, McCoy Tyner ao lado de Gerry Mulligan, como se dissesse: “já que você gosta desta esquina, experimente aquela”. No meio de tanta máquina que tenta nos manipular, é quase consolador descobrir que, ao menos aqui, algumas delas ainda ajudam a ampliar, e não a estreitar, o nosso mundo interior.

Para alguns minutos, aceito sem culpa essas amarras algorítmicas e deixo que me apresentem novidades dentro do meu velho gosto de sempre. No fundo, essas retrospectivas musicais são só a versão tecnológica de algo muito antigo: a nossa vontade de fazer balanços quando o ano termina. Antes, a gente rabiscava em cadernos o que deu certo, o que fracassou, quem chegou, quem partiu, que planos ficaram pelo caminho.

Hoje, o celular entrega o balanço pronto em forma de gráfico colorido, mas a pergunta continua a mesma: como eu vivi este ano? Em que gastei meu tempo, minha atenção, minha paciência, meu afeto? Talvez valha a pena ir além das músicas e deixar que esse tipo de pergunta nos alcance de verdade.

Se dá para ver quem foram nossos artistas mais ouvidos, também dá para pensar quem foram as pessoas mais presentes, os lugares que mais frequentamos, as conversas que nos fizeram bem, as causas às quais dedicamos energia. Que tipo de trilha sonora acompanhou nossas escolhas? Há anos em que a retrospectiva é um samba animado; em outros, parece mais um blues arrastado ou uma ladainha em tom menor.

O importante é não deixar que a vida se torne apenas ruído de fundo, correndo em autoplay, sem que a gente pare um pouco para ouvir o que ela está tentando dizer. As festas estão chegando, com sua mistura de cansaço e esperança. Entre um compromisso e outro, quem sabe valha refletir não só a retrospectiva musical, mas também a retrospectiva das relações, dos gestos, dos silêncios e dos recomeços.

É humano, e necessário, o exercício de refletir sobre si mesmo, e essas pequenas listas, por mais banais que pareçam, às vezes nos lembram que ainda somos capazes de nos surpreender com nós mesmos. Afinal, sem surpresa, a vida fica vazia e chata; com boa música, pelo menos, ela ganha alguma textura, algum brilho a mais.

Ah, e para os amigos que ficaram escandalizados ao ver o canto gregoriano entre os meus cinco gêneros mais ouvidos, não se assustem: não se trata de vocação monástica. A verdade é bem mais prosaica: eu costumo colocar esse tipo de música para dormir.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.

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