A busca pela equidade de gênero ainda se depara com uma dicotomia persistente: a separação de papéis “de homem” e “de mulher”. Trata-se de um fenômeno histórico, social e cultural, sustentado por estereótipos de gênero, expectativas sociais e desigualdades estruturais na família, na sociedade e no mercado de trabalho.
Entre as suas nuances, a associação do trabalho feminino ao cuidado reforça a lógica das chamadas “profissões de mulher”. O efeito cascata é cruel: profissões vistas femininas são desvalorizadas e mal-remuneradas, enquanto os homens concentram os espaços de liderança, ciência, política e tecnologia. E, assim, ditam as regras da sociedade, por meio de políticas públicas criadas majoritariamente por homens, perpetuando um modelo de sociedade que privilegia o olhar masculino.
Essa crítica não é nova. Na Convenção Sufragista de Washington, em 1868, Elizabeth Stanton já denunciava que a sociedade era “um reflexo do próprio homem, intemperada pelo pensamento feminino”. Segundo ela, ao negar a igualdade, se exigia que mulheres “fortes” abrissem mão de sua feminilidade para adotar comportamentos masculinos, reforçando a visão equivocada de que força e poder as tornariam “menos mulheres”.
Há quase dois séculos, a figura norte-americana, líder pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos, já percebia que a lógica de dominação estava em ignorar e reprimir características fortes e naturais da feminilidade. Isso porque, para alcançar espaços de decisão, mulheres deveriam performar características e comportamentos mais masculinos – o que reforçava a agressividade e reduzia o seu valor perante a sociedade, pois o senso comum levava à conclusão de que isso as tornaria menos mulheres, menos recatadas e menos devotas ao lar e à família.
Esse raciocínio se apoia em uma distorção histórica: a narrativa pré-histórica do homem caçador e da mulher cuidadora. Mas será que ela é verdadeira — ou apenas uma forma conveniente de reescrever a história para afastar as mulheres do poder?
A arqueologia responde. Em sítios como o de Wilamaya Patjxa, no Peru, sepulturas de 9 mil anos revelaram mulheres enterradas com ferramentas de caça de grandes animais. A conclusão é clara: a divisão de tarefas era funcional e adaptativa, não determinada pelo gênero. Mulheres também tinham visão estratégia, caçavam, lideravam e arriscavam.
O mito do homem protagonista e da mulher coadjuvante não passa, portanto, de uma projeção dos preconceitos dos historiadores — em sua maioria homens — que escreveram a história. Essa narrativa afastou mulheres dos espaços de decisão, reforçou a submissão e consolidou barreiras que ainda hoje se manifestam como teto de vidro, segregação ocupacional e afastamento de posições de liderança.
Manter esses estereótipos significa limitar escolhas, reduzir a diversidade e perder a riqueza de visões que só a pluralidade oferece – o que resulta em políticas e instituições enviesadas. Sociedades são complexas demais para se sustentar na lógica da dominação de um gênero sobre o outro. A competência não se mede pelo sexo biológico, mas pela aptidão, formação, experiência e dedicação.
Repetir as justificativas do passado nos impede de avançar para o próximo estágio. Impor hierarquias de gênero é dar passos para trás. O futuro exige relações justas, com equidade, cooperação e corresponsabilidade.
Profissões não têm gênero. E o poder também não deveria ter.
Que possamos derrubar as narrativas que nos silenciaram, romper muros que nos afastaram do poder e, finalmente, ocupar os espaços de decisão sem abrir mão da nossa força e da nossa voz.