Não se trata apenas de mais uma alteração legislativa, mas de um marco simbólico e político. No dia 22 de outubro de 2025, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou a inclusão da misoginia na Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989), equiparando o ódio e a discriminação contra as mulheres aos crimes previstos contra pessoas negras, indígenas, religiosas ou de outras origens – formas de discriminação que corroem a democracia e a dignidade humana. Um avanço que reconhece o que há muito tempo sabemos: o preconceito de gênero também fere a democracia e a dignidade humana.
Misoginia não se resume a agressões explícitas ou ataques nas redes. O Projeto de Lei nº. 896/2023 a define como a conduta que manifesta ódio ou aversão às mulheres, baseada na crença de superioridade do gênero masculino. Essa hostilidade, muitas vezes invisível, se infiltra nas piadas, nas interrupções, nas exclusões e no descrédito diário que tantas mulheres enfrentam em todos os espaços. É o preconceito travestido de costume, o machismo disfarçado de opinião.
A inclusão da misoginia na Lei do Racismo não cria um novo crime, mas enquadra comportamentos misóginos já existentes nas categorias de discriminação e preconceito, ampliando o alcance das punições. O texto prevê agravamento das penas quando a ofensa ocorrer sob o pretexto de “brincadeira”, “diversão” ou “recreação”. Além disso, obriga o juiz a considerar discriminatórias atitudes que causem constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida.
Em termos práticos, isso significa que ofensas, palavras, humilhações e discursos de ódio baseados em gênero, hoje tão naturalizados nas redes sociais, poderão ser tratados como crimes, e não mais como incidentes isolados ou “opiniões polêmicas”. Ou seja, quando o comportamento configurar misoginia, ele deixará de ser uma ofensa moralmente reprovável, enquadrando-se como crime de natureza grave, com repercussão penal e social.
É verdade que o Brasil já conta com a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.1340/2006), reconhecida mundialmente como uma das mais avançadas na proteção das mulheres. Contudo, sua aplicação se restringe aos casos de violência doméstica ou familiar – quando a mulher possui algum tipo de vínculo afetivo ou familiar com o seu agressor. Apesar de esses serem a maioria dos casos, ainda temos um número alto de mulheres enfrentam a discriminação no dia a dia sem ter ligação com o agressor. Portanto, a nova proposta vem ampliar essa proteção, alcançando também as hipóteses nas quais as mulheres não tem vínculo afetivo ou familiar com quem causa-lhe constrangimento.
Mas o desafio vai além das leis. O endurecimento legislativo não é suficiente: precisamos do preparo dos agentes públicos e da conscientização da nossa sociedade para que as leis sejam aplicadas; para que o sistema de justiça acolha as vítimas e suas famílias com empatia e estrutura - não apenas como objeto de prova no processo criminal, mas como pessoas em sofrimento e que precisam de acolhimento. É preciso oferecer suporte psicológico, social e financeiro, garantindo condições reais para recomeçar.
Mais do que isso, precisamos de políticas públicas de enfrentamento dessa realidade como uma questão de segurança pública, que devasta a nossa sociedade e as famílias das vítimas, e não uma questão ideológica, sujeita à polarização.
Necessitamos, sobretudo, de educação. A construção de uma sociedade na qual as mulheres não precisem lidar diariamente com o medo depende da educação de todos, desde a educação básica, para que as meninas aprendam como devem ser tratadas e para que os homens reconheçam esse tipo de violência – e rompam com o comportamento social que naturaliza comportamentos violentos, a dominação e a repressão das mulheres.
Por fim, precisamos do preparo dos agentes públicos e de segurança jurídica, com a valorização da dignidade, com aplicação da razoabilidade e proporcionalidade dos intérpretes da lei, para que puna os agressores sem que o uso do tipo legal seja banalizado – o que deslegitima uma pauta tão urgente e necessária.
Não bastam mais palavras, sejam elas em campanhas publicitárias, nas redes sociais ou no texto legislativo. Precisamos, com urgência, de uma transformação estrutural, para que consigamos ter efetividade no direito das mulheres de serem donas das suas próprias vidas com autonomia e segurança, livres do medo e do preconceito de gênero.