Os carpetes dos salões principais do Congresso Nacional amanheceram encharcados na segunda-feira, 9 de janeiro. Os estilhaços das vidraças espatifadas a golpes de paus e pedras cobriam o piso do Salão Negro, e servidores ainda registravam nas primeiras horas do dia os estragos nas peças centenárias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A tapeçaria de Burle Marx, obra avaliada em R$ 4 milhões, continha rastros do ataque a que fora submetida no dia anterior: suja de urina e rasgada.
Símbolo do Legislativo brasileiro, o prédio do Congresso foi o primeiro a ser invadido pelos golpistas que destroçaram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, no 8 de Janeiro. A depredação gerou prejuízo de R$ 7 milhões aos cofres públicos. O assalto às edificações representou o maior ataque perpetrado contra a democracia brasileira na história recente, segundo relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que se debruçou sobre os atos antidemocráticos do 8 de Janeiro e pediu os indiciamentos de 61 pessoas.
A marcha: Abin alerta para ações violentas, secretário ignora e vândalos rompem bloqueio policial
O documento reúne, em centenas de páginas, os pormenores da intentona golpista no 8 de Janeiro e indica omissão das forças de segurança na repressão aos vândalos. O primeiro alerta da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) pipocou nos celulares dos participantes do grupo nomeado Difusão, no WhatsApp, às 8h53 daquela manhã. Ali estavam reunidos o coronel da Polícia Militar do Distrito Federal, Fábio Augusto Vieira, dois agentes da Polícia Civil, o então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres — ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, o secretário de Segurança substituto do DF, Fernando de Sousa Oliveira, a delegada da Polícia Federal, Marília Ferreira de Alencar, e o tenente-coronel da Polícia Militar do DF, Jorge Henrique da Silva Pinto.
O alerta advertia para a chegada de 101 ônibus com manifestantes a Brasília e indicava “incitações para ocupações de prédios públicos e ações violentas”. O informe da Abin se repetiu às 9h e às 10h. Àquela altura, o órgão projetava que 3.000 pessoas compareceriam ao protesto contrário à eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pró-intervenção militar. Para a data, a Polícia Militar não deixou agentes em regime de prontidão — o que acontece quando permanecem nos batalhões para coibir emergências. Eles ficaram apenas de sobreaviso.
A marcha que antecedeu a violação do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF) começou pouco antes de 13h. O grupo partiu do Setor Militar Urbano onde, após o resultado da eleição, bolsonaristas se reuniram em um acampamento que perdurou até 9 de janeiro para contestar o resultado legítimo das urnas.
Enquanto a multidão seguia em direção à Praça dos Três Poderes, o secretário Fernando de Sousa Oliveira, que ocupava o lugar de Anderson Torres (de férias nos Estados Unidos), mandou uma mensagem para o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). “Manifestação totalmente pacífica. Até agora. Nossa inteligência está monitorando e não há nenhum informe de questão de agressividade”, disse, contrariando os informes da Abin.
Nesse ínterim, os manifestantes chegaram à primeira barreira policial instalada nas imediações da Catedral de Brasília, às 14h30, distante cerca de um quilômetro e meio do Congresso, e seguiram sem bloqueio. Treze minutos depois, às 14h43, o grupo alcançou a segunda linha de contenção, na Alameda dos Estados, onde romperam os gradis — o relatório da CPMI classificou a ação como ‘movimento sincronizado’ e ‘coordenado’. Ali, os vândalos se dividiram em três grupos: um se dirigiu ao Congresso, outro ao STF e o terceiro ao Palácio do Planalto.
‘Técnicas de guerrilha': policiais são dominados, e Congresso invadido e depredado
Ao romper os gradis, os manifestantes atravessaram o gramado que liga a Alameda à entrada principal do Congresso e seguiram em direção ao cordão de segurança, onde eram aguardados por vinte militares, que tentaram contê-los com gases de efeito moral e tiros de borracha. Bastaram 15 minutos para os vândalos invadirem o prédio quebrando as vidraças que dão acesso ao Salão Verde da Câmara dos Deputados. Ali, eles entraram em choque com cerca de 60 agentes da Polícia Legislativa, a quem cabe a proteção das instalações do Congresso. O reforço da Polícia Militar chegou duas horas depois, às 17h.
À CPMI, o então coronel da Polícia Militar, Jorge Eduardo Naime, declarou que os vândalos empregaram ‘técnicas de guerrilha’ na invasão ao Congresso Nacional. Segundo relatos, eles se dividiam em duas fileiras: a primeira atuava no enfrentamento direto com os policiais legislativos e arrombava portas e janelas para permitir a entrada de outros manifestantes no espaço; na segunda fileira, suspeitos distribuíam água para aqueles que combatiam no ‘primeiro pelotão’.
Com a passagem livre, os vândalos se distribuíram pelos espaços do Congresso, invadiram os plenários da Câmara e do Senado, danificaram peças centenárias, rasgaram cadeiras, quebraram placas em mármore que revestiam paredes e pisos, destruíram computadores e mobílias e arremessaram uma viatura da Polícia Legislativa no espelho d'água. Relatórios com centenas de páginas elaborados por técnicos esmiúçam a extensão do estrago que acarretou prejuízo de R$ 7 milhões. A reposição das vidraças da Câmara, por exemplo, custou cerca de R$ 100 mil, a troca do carpete encharcado pelo uso de hidrantes, R$ 600 mil.
Obras de arte inestimáveis não escaparam à intentona golpista, e documentos públicos listam as peças avariadas. Entre elas, o muro escultórico, de Athos Bulcão; a Bailarina, de Victor Brecheret e a escultura Maria, Maria, de Sônia Ebling.