O andar compassado anuncia que uma senhora se aproxima. O vestido longo, quadriculado em tons de cinza, combina com o tom grisalho dos cabelos. O colar com contas de búzios lembra um pensamento que ela externará dali a pouco: “O futuro é ancestral”.
Nascida em
Neste sábado (3), a autora de “Ponciá Vicêncio” e “Becos da Memória”
A Bienal Mineira do Livro de 2025 acontece entre esse sábado (3) e o próximo (10) no Centerminas Expo, próximo ao Minas Shopping, na regional Nordeste da capital. A entrada custa R$ 20 a inteira.
Confira a entrevista com Conceição Evaristo
Itatiaia:
Olha, eu gosto muito de Bienal. Um dos primeiros objetivos de uma Bienal é esse momento de democratização da leitura e do livro, em termos de desejo. Cada pessoa que vai à Bienal, se puder adquirir um livro, é muito bom. Mas se a Bienal conseguir, pelo menos, oferecer essa percepção de que o livro, de que a leitura, de que a escrita é um direito cidadão, a Bienal já cumpre pelo menos um pouco da sua missão.
Vir a Belo Horizonte para uma Bienal do livro é também olhar Belo Horizonte de um outro lugar. Cada vez que eu venho a Belo Horizonte eu usufruo de uma cidade que na minha infância não era nem sonho. Isso me deixa muito feliz.
Venho de uma origem popular. Uma criança, jovem ou adulto que me contempla pode ter essa possibilidade de criação. Que escrever é possível, publicar é possível, se tornar uma escritora conhecida é possível, embora eu sempre afirme que é uma possibilidade ainda muito limitada. Quantos escritores e os escritores que estão com seus trabalhos ainda guardados nas gavetas.
Itatiaia: A senhora falou que voltar a Belo Horizonte para participar da Bienal é como se fosse uma vitória. Em uma entrevista para o
É. E é uma vingança sutil, né? É uma vingança com elegância. Eu gosto muito da elegância. E a elegância para mim não é só a do trajado. Mas a elegância da dignidade, do cuidado, de você dizer as coisas e deixar o outro perceber. Não precisa você dizer tudo. Você diz meia palavra.
Ontem eu passei por uma experiência: passei aqui por baixo do viaduto Henriqueta Lisboa. Eu falei com a moça que me acompanha: A minha mãe foi empregada de dona Henriqueta e de dona Alaíde Lisboa. As escritoras. E hoje atravesso por baixo desse viaduto para vir para um hotel e sou uma das convidadas da Bienal.
Aí que eu falo que reside a vingança. Aí que eu falo, a gente tem falado muito das comunidades negras e indígenas: o futuro é ancestral. Talvez a tua avó, a tua mãe, a tua bisavó, tenham sonhado uma outra história para você. Você está aqui hoje construindo outra história. O futuro é ancestral.
Foram pessoas lá do passado que sonharam, não puderam estar e você hoje está. A minha mãe, no fundo da cozinha da dona Henriqueta, tinha um desejo de vida que ela não realizou. E aqui estou eu. É uma doce vingança. Você deve estar vingando alguma coisa também. E vingar aí tem um sentido tanto de dar o troco como também, uma expressão muito usada em Minas, você plantava, uma rosa, e se a rosa brotasse, se a planta nascesse, você falava: “A planta vingou”. Tem esse sentido também de florescer.
Itatiaia: A senhora disse que não podia usufruir dessa BH nem como sonho. Que memórias BH evoca para a senhora? Qual sua relação com a cidade e quais lugares a senhora mais gosta aqui?
A relação que eu tenho com a cidade é de uma alegria intensa. É reconhecer uma cidade que me acolhe muito, mas foi também uma cidade que me expulsou. Quando eu saí daqui, em 1973, eu saí não porque queria. Eu saí porque queria dar aula e não tinha concurso para professor. Eu saí porque a favela onde eu morava tinha sido extinta e a nossa condição de vida tinha piorado intensamente.
Belo Horizonte é uma cidade que me escolhe, que me acolhe. Ando na Serra, no bairro do Cruzeiro, onde era a favela. Ali no Funcionários, onde fiz meu primário, meu jardim de infância. O colégio no bairro Santo Antônio onde era a UFMG (
Essas memórias hoje têm um gosto de vitória, mas poderiam não ter. De todas as pessoas, mulheres e homens, que foram meus contemporâneos, creio que nenhum deles conseguiu romper a barreira da pobreza. Belo Horizonte é esse misto de vitória no presente, mas na vitória que não foi construída de uma hora para outra.
Eu diria que o lugar que gosto muito em Belo Horizonte é o
A feira do Colégio Arnaldo, aos sábados. Na feira da Santa Rita Durão a gente ia porque era muito perto da favela, a gente ia pegar o resto das coisas. Feira e mercado sempre me seduziram pela fartura. Entende? Talvez porque a gente não tivesse tanta fartura, então era muito bonito.
Fui muito ao
Belo Horizonte tem uma geografia afetiva para mim. Voltar à cidade e ver como Belo Horizonte mudou. A rua Estevão Pinto, eu estudei ali no colégio Assunção. Não tem mais nada [igual], só tem prédios. Quando chego em Belo Horizonte também é como se meu corpo tivesse sido agredido. Porque é uma agressão à minha memória afetiva. Eu passo por alguns lugares e não reconheço mais.
Itatiaia: A senhora costuma dizer que não cresceu cercada por livros, mas por palavras. E a oralidade e a memória, essenciais para a literatura, são desvalorizadas quando um escritor negro decide abordá-las. Como marcar essa posição de resistência na escrita e cavar o seu espaço?
Eu diria que esse cavar, e você falou de memória, me traz a ideia de escavação. Em princípio, eu diria que é como um exercício de sobrevivência. Se eu não escrevesse o que escrevo, não sei se eu teria outro texto para escrever.
Todo texto meu, poemas, romance, a prosa, até a crítica literária, nasce no âmbito do meu desejo. É esse texto que eu preciso. Isso gera uma confusão, porque falo de escrevivência, e as pessoas podem achar que não tem ficção, que não tem um trabalho de elaboração. Tem, e muito.
Quando digo que nada do que está escrito em “Becos da Memória” é verdade, e nada é mentira, eu digo que são ficções da memória. O que me inspira é a minha experiência de menina e de jovem favelada, do desfavorecimento. A memória, quando esquece, ela inventa. E talvez seja nesse espaço do esquecimento que more a ficcionalização.
Itatiaia: O meio literário, apesar das mudanças nos últimos anos, ainda é muito masculino e branco. Mas em eventos como a Bienal a gente vê como o público negro, o público feminino, estão presentes e são protagonistas. O que a senhora falaria para novos escritores negros e negras que lutam por esse espaço de reconhecimento?
Essa crença no valor do nosso texto tem de começar por nós. Nós mesmo temos de acreditar que nosso texto tem valor. O sistema literário vai definir uma literatura e julgá-la para o público. Enquanto isso, é um trabalho muito silencioso.
Até acontecer tudo comigo, até eu ser convidada para as grandes feiras literárias, a minha primeira publicação foi aos 44 anos. É preciso muita persistência, e eu digo que para mim foi muito importante estar num coletivo. O primeiro lugar de recepção da minha obra foi o movimento social negro. Foi o movimento de mulheres, professores lendo meus textos, levando meus textos para a sala de aula.
Minha primeira publicação foi nos Cadernos Negros, em 1990. A não ser que tenha sorte ou apadrinhamento, a pessoa não vai começar com visibilidade. É muito difícil. Mas você não pode desanimar do seu trabalho. É ter uma dose de paciência, de persistência. Foi importante eu ter sido da área de Letras, porque eu não perdia um encontro de literatura. Com toda dificuldade do mundo, mas ia.
É para romper com esse espaço que é muito mais difícil para nós mulheres negras. É acreditar no nosso poder de escrita, nosso poder de criação. A sociedade brasileira ainda tem uma certa dificuldade.
Itatiaia: Queria te perguntar sobre a escrevivência. Como a senhora explicaria o conceito para uma pessoa que ainda não conhece a literatura?
Eu diria que a escrevivência não é só um jogo de palavras, não é só escrever a vida. Várias áreas do conhecimento estão utilizando a escrevivência como suporte teórico para a própria elaboração do texto. Ela não é um desabafo pessoal. Não é só escrever sobre si. Essa escrita traz, sim, uma história de vida, mas não particularizada.
Uma história de vida que sirva de paradigma para pensar outras histórias de vida. Uma história de vida que nos coloque, que coloque o leitor, numa percepção da sociedade que criou aquela história.
A escrevivência é um texto que possibilita o conhecimento não só de uma história pessoal, de um sujeito ou de outro, ou pessoal do sujeito da escrita, mas de uma história que nos dá a percepção de um todo que está imbricado ali naquela história, de um todo coletivo.
Itatiaia: Pensando em memória e oralidade: como as histórias que a senhora ouvia, da sua mãe e das suas tias contribuem ainda hoje para seu pensamento?
Eu diria que o meu texto tem uma linguagem que vivo, que busco conscientemente. Estou trabalhando com a arte da palavra. Assim como o músico fica horas estudando, e o ator busca construir o seu personagem, eu busco a forma de construir o meu texto. Isso é buscar a linguagem, é um exercício.
A fala da minha mãe. A entonação da minha família. Eu tenho uma irmã que ainda conversa muito com ditados. É a linguagem do povo. Eu gosto muito de olhar para as pessoas e tento traduzir em palavras, e invento palavras também. Esse exercício é muito marcado pela experiência da oralidade.
Quando “Grande Sertão: Veredas” começa com “No nada”, é o povo que diz: “Não é nada, não é nada”.
Esse aproveitamento que tenho da linguagem vem de dentro, que eu aprendi. Ontem mesmo estava conversando com minha assessora. Tiramos uma cerveja da geladeira, conversamos se ia voltar ou não para a geladeira.
Eu falei: “Ah, mas a cerveja quando torna a voltar para a geladeira fica sambanga”. Ela falou: “O que é isso? Cerveja sambanga?”. Aí a outra menina falou: “Ela fica chocha”. Sambanga era um termo que a minha mãe usava muito. Até quando o café tava ralo, esse café tava sambango. Que é uma palavra de origem banto. Assim como “pitimbado”, quando você está sem dinheiro. Não sei se ainda se usa esse termo aqui em Minas.
Todas essas expressões estão na memória da minha infância, da minha maneira de construir frases. É um legado que trago dessa linguagem.
Itatiaia: A senhora está preparando o lançamento de alguma obra? Alguma coisa para os próximos anos, os próximos meses? Alguma novidade para contar para a gente?
Olha, tem várias, só que essa preparação está estagnada. Está muito mais na mente, no desejo e no compromisso comigo mesma do que numa realização da escrita.
Eu tenho um romance que se chama “Flores de Mulungu”. Eu preciso terminar esse romance. Eu tenho um livro de contos que pretendo fazer uma trilogia. Já tenho o “Submissas Lágrimas de Mulheres”. Esse livro de contos se chama “O Silencioso Pranto dos Homens”.
Eu quero escrever alguma coisa também sobre a infância, sobre a adolescência. Comecei a fazer um livro crítico sobre literatura de pessoas mais jovens do que eu.
E tem um livro que cada vez que eu anuncio as pessoas entram numa euforia muito grande, que vai se chamar “O gozo e seus movimentos”. Que é um livro que vai ter uma pegada que eu não gosto de chamar de erótica, tá? Eu quero falar de amores. Por enquanto acho que é só.