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O estupro é legal no Brasil

Os números não nos deixam ter dúvida. Agora, discute-se punir criminalmente a vítima.

Alice tem 10 anos. Está grávida. O pai da criança é o pai dela. “Você sabe como engravida, Alice?”, pergunta a repórter. “Não, acho que eu ia aprender na escola, no ano que vem”. Não interessa se você é de esquerda, de direita ou de centro. Se acredita ou não em Deus, se é homem ou mulher. Sei que você entende, ao saber da história da Alice, que o estupro é legal no Brasil.

Você acha que não? Pensa comigo: pai estupra, irmão estupra, tio, marido, namorado, avô, professor, padre, pastor, cuidador, enfermeiro, médico, anestesista, todos estupram. A estuprada pode ser bebê, criança, adolescente, adulta ou idosa. O local pode ser na rua, na escola, na boate, na igreja, no hospital ou em casa. Pode estar de roupa curta, pode estar bêbada, drogada, mas também pode estar sóbria, brincando no quintal, indo trabalhar, internada, entubada ou até parindo.

Os números não nos deixam ter dúvida da legalização do estupro no Brasil. Por ano, são mais de 74 mil casos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Isso deve representar, de acordo com especialistas, apenas 10% por cento dos que ocorrem, de fato, porque a maioria não denuncia. Para fechar a conta que chancela a legalização, o número de estupradores presos é de cerca de 1%. Essa matemática é vivida - sofrida, melhor dizendo - sob os olhos de 215 milhões de brasileiros. Entre eles, mais de 5.500 prefeitos, 27 governadores, mais de 500 deputados federais, 30 mil padres,18 mil juízes e 11 mil pastores.

Legalizado por nós, o estupro já é. Mais do que isso, só faltaria dar incentivo à prática, quem sabe isenção de impostos. Ou então imitar os afegãos e colocar, em uma singela linha da lei, a proibição de denunciar parentes por estupro. Mas, se ainda restava alguma dúvida, veio a maior comprovação da legalização da prática do sexo forçado mediante ameaça ou violência, no Brasil: a discussão sobre a passagem da estuprada da condição de culpada para a de homicida.

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O PL 1.904/24 não discute o aborto, ele reforça o estupro legal. E não adianta nem eu nem você pensarmos que não estamos no meio disso. Estamos todos. Sim, nós, brasileiros, não achamos que fazer sexo à força com uma mulher é crime, nem se ela for criança, como a Alice, e nem se for ato praticado pelo próprio pai dela. É fato. Se não fosse pacificado dentro da nossa sociedade, naturalizado, algo estaria sendo feito para impedir o estupro e não estaríamos tendo discussões distorcidas, a exemplo do PL em debate.

Não estamos falando de aborto, estamos endossando a prática do estupro e decidindo como vamos sentenciar vítimas. Na verdade, estamos falando, em boa parte, de meninas que, praticamente, serão abortadas tardiamente, na infância ou adolescência. Só atrasamos o processo de ceifar a vida delas. Elas foram indesejadas, não planejadas ou impostas pela violência. Elas cresceram vulneráveis e retomam, agora, o ciclo. Vamos abortá-las com alguns possíveis protocolos: via sistema carcerário falido, via geração de uma criança, também vulnerável, que vai repetir o ciclo dela ou por meio da via mais definitiva e rápida: deixando-as morrer no meio de um procedimento de aborto ilegal.

A distorção beira o absurdo. O país que não conseguiu proteger mulheres e crianças de estupradores pensa em uma saída - prisão. Mas, no caso, das vítimas, já que o estuprador não será preso. Nunca foi. Ao invés de discutir o fim do ciclo da cultura do estupro, vamos falar do fim do ciclo da vítima, é claro.

Até podemos ter discussões distorcidas, mas rotulá-las de debates em defesa da vida é demais. Está claro que o nosso país não se importa, de fato, com a vida de ninguém, muito menos dessas meninas. A nossa discussão atual é algo do tipo: ou prende pelo aborto ou gera uma criança para a qual, depois, provavelmente, vamos pedir diminuição da maioridade penal, afinal é bandido porque quer. É sentença de morte de qualquer jeito. A mesma sociedade que condena a morte do feto coaduna com todo tipo de violência que sentencia o ser humano que dele cresceu..

O estupro já foi legalizado no Brasil e aceito por mim e por você. Caso contrário, estaríamos tentando compreender as estatísticas e dando voz às vítimas para, quem sabe assim, acharmos uma forma de punir, de verdade, e evitar que novos estupradores se formem. Mas não. Decidimos silenciar nossas Alices, grávidas aos 10 anos e com isso tentar abortar a voz da culpa que pode estar dentro de nós e admitir ainda que baixinho: somos um país estuprador.


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Maria Claudia Santos é Diretora de Jornalismo da Itatiaia. Começou a carreira na rádio, passou pela Central de Notícias Internacionais e pela Coordenação de Jornalismo na Rádio, além de realizar coberturas no exterior. É formada em jornalismo e mestre em Gestão Social.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.