Ouvindo...

Entenda os detalhes do PL das fake news

Proposta tem sido usada na disseminação de notícias falsas

Projeto afeta diretamente plataformas digitais

Em discussão atualmente no Congresso Nacional, o projeto de lei das fake news (PL 2.630) tem causado muita dúvida — culpa da disseminação de informação falsa sobre ele. O autor da proposta é o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e o documento prevê novas diretrizes para redes sociais em relação a crianças e adolescentes, veiculação de notícias, divulgação de conteúdo falso e impulsionamento de propaganda eleitoral e de conteúdos políticos.

Leia também:

Já aprovado no Senado, ele atualmente tramita na Câmara dos Deputados e pode ser votado no plenário na próxima terça-feira (2). Como seu conteúdo foi alterado pelos deputados, ele deve voltar ao Senado para apreciação. Se aprovado nas duas instâncias, segue para sanção presidencial e vai criar a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

Entre os parlamentares, há quem defenda a criação de uma comissão para analisar o texto. Esse adiamento é apoiado por empresas que serão diretamente afetadas pelas normas, como Google e Meta. O Brasil acompanha uma tendência mundial de regulação das redes sociais: a Comissão Europeia, por exemplo, anunciou que novas regras devem atingir as maiores plataformas digitais a partir de agosto.

Enquanto o PL 2.630 é discutido, redes sociais têm permitido que posts com informações falsas sejam amplamente divulgados a partir de pagamento. Um relatório do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra que essas publicações se intensificaram na véspera da votação da urgência do projeto na Câmara dos Deputados.

Exemplo claro

O estudo aponta que pelo menos duas contas no Instagram pagaram para promover um anúncio sobre a possibilidade de restrição à liberdade religiosa no Brasil. Isso não é verdade: o texto atual do projeto afirma que não haverá limitação ao “livre desenvolvimento da personalidade individual, à livre expressão e à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural”.

Um que espalhou esse tipo de informação falsa foi Deltan Dallagnol (PODE-PR), que informou em uma rede social que versículos seriam supostamente barrados — em uma espécie de censura prévia, que puniria criadores de conteúdo por publicações que ainda não existem. Ou seja, deu a entender que a legislação, se aprovada, seria usada para perseguir conteúdo religioso.

Em seguida, um influencer filiado ao Partido Novo pagou R$ 100 para disseminar o conteúdo no Instagram. O NetLab aponta que o post não foi autodeclarado como político pelo anunciante, mas depois foi denominado como político/sensível pela Meta. A publicação obteve 1 mil impressões. Informações contidas em publicações desse tipo podem ser verificadas em sites confiáveis ou diretamente no texto do projeto.

Embora esses conteúdos (bem como os políticos e os relacionados a humor) estejam fora do escopo do projeto desde a primeira versão do texto, diante da disseminação da informação falsa, Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto, deixou ainda mais explícito no texto que as medidas não atingem a liberdade religiosa — que, vale lembrar, é protegida pela Constituição. Integrantes da bancada evangélica se mobilizaram para divulgar vídeos em defesa do projeto e negar que haverá vedação a versículos bíblicos.

Essas publicações com informações falsas são um ótimo exemplo do que trata o projeto. Para a pesquisadora Marie Santini, do NetLab, elas demonstram a importância da aprovação da norma para iniciar a regulamentação das plataformas. “O que precisamos regulamentar é justamente isso: aumentar a transparência dessas empresas em relação a sua lógica de funcionamento e a seus anúncios, o coração do modelo de negócios das redes sociais, para proteger os usuários”, diz, em entrevista a O Globo.

Ela destaca a necessidade de criar limites e regras para aumentar a segurança dos usuários e impedir que as plataformas ganhem dinheiro com anúncios que divulgam mentiras e conteúdo criminoso (isso inclui golpes, fraudes, venda de armas, incentivo a atentados em escolas e outros). Marie lembra que esse conteúdo atinge especialmente os mais vulneráveis, como crianças e idosos.

Principais pontos

O objetivo do projeto de lei é estabelecer regras, diretrizes e mecanismos de transparência para redes sociais, ferramentas de busca, mensageiros instantâneos e indexadores de conteúdo. A legislação não será aplicada a empresas de comércio eletrônico, realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz, enciclopédias online sem fins lucrativos, repositórios científicos e educativos e plataformas de desenvolvimento e compartilhamento de software de código aberto.

Se aprovado e sancionado, o PL 2.630 vai atingir plataformas com mais de 10 milhões de usuários em 12 meses — mesmo aquelas com sede no exterior. Esses serviços, então, terão de atuar de forma preventiva em relação a conteúdos potencialmente ilegais, bem como compartilhar relatórios semestrais de transparência em português.

A ação deve ocorrer quando as empresas forem notificadas por usuários de que determinados conteúdos são potencialmente ilegais ou trazem risco de danos à dimensão coletiva dos direitos fundamentais. Assim, sempre que tomarem conhecimento de informações — ou seja, não antes de um material ser publicado — de que ocorreu ou que possa ocorrer um crime que envolva ameaça à vida, as empresas deverão informar as autoridades imediatamente.

De acordo com a proposta, então, as plataformas terão de criar mecanismos de denúncia. Os conteúdos atingidos são os que configuram ou incitam tipos específicos de crimes:

  • contra o Estado Democrático de Direito e de golpe de estado;

  • atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo;

  • crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação;

  • crimes contra crianças e adolescentes e de incitação à prática de crimes contra crianças e adolescentes ou apologia de fato criminoso ou autor de crimes contra crianças e adolescentes;

  • crimes de discriminação ou preconceito;

  • violência política contra a mulher

  • infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias quando sob situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.

Não há a determinação, no projeto, de que as plataformas retirem o conteúdo do ar. Mesmo assim, elas devem, “de boa fé e de forma diligente, proporcional e não discriminatória” investigar e adotar medidas (e isso pode incluir ou não a remoção do material).

Ricardo Campos, diretor do Legal Grounds Institute e professor na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main, aponta que as principais mudanças no texto inicial — o apresentado por Vieira — tiveram a aprovação da Digital Markets Act, a regulamentação de mídia na União Europeia. Campos colaborou na construção do PL.

Ele diz que o Brasil teve inspiração concreta, como ocorreu com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) — guiada pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (General Data Protection Regulation – GDPR). “A grande novidade dessa versão para o debate de três anos atrás é que houve aproximação com o regulamento europeu”, explica.

Segundo Campos, o Brasil enfrenta a mesma dificuldade que a Europa na defesa da democracia. “Poucas empresas privadas administram a liberdade de expressão da população e ganham dinheiro com isso por meio da venda de anúncios”, comenta. “Esse foi um ponto crucial para a aproximação da proposta europeia com a brasileira.”

O especialista afirma que o projeto “atende a expectativas internacionais quanto às discussões que existem sobre o tema. Há muitos pontos em que o Brasil está inovando”. “Esse é o momento de garantir o direito com a aprovação do projeto. Como isso vai funcionar no Brasil é uma discussão para outro momento, o da implementação. Temos em nossa proposta várias inspirações que, juntando, viramos uma referência global no assunto”, afirmou.

Aspectos da proposta

Diferentes segmentos podem ser afetados pelas regras. Em relação a eleições, por exemplo, empresas que fizerem impulsionamento de propaganda eleitoral ou de conteúdos políticos terão de informar todo o conjunto de anúncios, com custo e tempo de veiculação. Já os aplicativos de mensagens devem limitar a distribuição massiva de conteúdos e mídias. Conteúdos jornalísticos usados pelas plataformas devem render remuneração às empresas que os produziram.

A lei regulamenta a moderação de conteúdo e torna as empresas corresponsáveis pelos danos causados por anúncios pagos e distribuídos em suas redes sociais. “Não se trata de censurar usuários comuns. O que se pretende é impedir que a plataforma seja estimulada economicamente por conteúdo falso e criminoso”, explica Marie, do Netlab. Nos últimos meses, por exemplo, pesquisadores identificaram o pagamento de anúncios relacionados a golpes financeiros.

A administração pública não deverá destinar recursos públicos para publicidade em sites e contas em redes sociais que promovam, recomendem ou direcionem a discursos ilícitos. Já os perfis “de interesse público” — como presidente da República, ministros, governadores, prefeitos e secretários — não poderão bloquear usuários em redes sociais. O projeto propõe que a imunidade parlamentar se estenda às redes sociais e agentes políticos com mais de um perfil terão de indicar qual deles é profissional.

As plataformas devem criar mecanismos para impedir o uso dos serviços por crianças e adolescentes abaixo da faixa etária adequada. Além disso, as redes sociais com acesso a crianças precisarão ter um nível elevado de privacidade, proteção de dados e segurança. Elas ficam proibidas de monitorar o comportamento desses usuários para direcionar anúncios publicitários a esse público.

Se descumprirem a lei, os serviços podem sofrer diferentes tipos de punição: advertência, multa, suspensão e proibição de exercício das atividades no país, entre outras. O Poder Executivo pode criar uma entidade autônoma de supervisão para fiscalizar as plataformas, iniciar processos administrativos e aplicar penalidades. Quem promover ou financiar divulgação em massa de fake news pode ser condenado a pena de 1 a 3 anos de prisão e multa.

A entidade autônoma de fiscalização vai poder estabelecer um protocolo de segurança por 30 dias quando identificar risco iminente de dano à dimensão coletiva de direitos fundamentais. A partir disso, as plataformas poderão ser responsabilizadas por danos decorrentes do conteúdo publicado. Isso vai ocorrer se for comprovado conhecimento prévio e, mesmo assim, falta de adoção de medidas previstas em lei ou se elas forem consideradas insuficientes.

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pediu que fosse incluída a possibilidade de as redes sociais suspenderem perfis, contas ou canais considerados produtores “sistemáticos” de desinformação e publicadores “contumazes” de informação falsa sem a necessidade de notificá-los. Moraes enviou cinco sugestões para serem incorporadas à proposta.

Elas não puderam ser adicionadas ao projeto porque Silva não teve tempo de consultar líderes partidários. Com autorização para votação de urgência, a versão final do projeto, com 110 páginas, foi entregue pelo deputado na noite de quinta-feira (27). As movimentações podem ser acompanhadas no site da Câmara dos Deputados.