Um projeto de lei protocolado na Câmara Municipal de Belo Horizonte pretende regulamentar a internação voluntária e involuntária de dependentes químicos na rede pública de saúde da capital. O texto, apresentado pelo vereador Braulio Lara (Novo), estabelece que a internação involuntária poderá ser solicitada por familiares ou, na ausência destes, por servidores públicos das áreas da saúde e assistência social.
O parlamentar justifica a proposta alegando que o número de pessoas em situação de rua aumentou em Belo Horizonte nos últimos anos e que muitas delas são dependentes químicos sem condições de buscar tratamento por conta própria.
“Nos últimos sete anos, a população de rua em Belo Horizonte cresceu mais de 50%, e infelizmente vemos um grande número de pessoas viciadas em drogas andando pelas ruas. Elas precisam de encaminhamento”, afirmou à Itatiaia.
“O objetivo desse projeto de lei é trazer uma internação involuntária para dependentes químicos observados e identificados pelos serviços de assistência social e da prefeitura. Não adianta apenas ver essas pessoas largadas e abandonadas. Não queremos uma cracolândia prosperando em nossa cidade”, disse.
A proposta estabelece que a internação involuntária deve ser autorizada por um médico, com base em laudo que comprove risco à integridade do dependente, de terceiros ou da coletividade. A alta só ocorreria por decisão médica ou quando cessassem os motivos que justificaram a internação.
O que diz a lei federal?
A internação involuntária de dependentes químicos já é regulamentada no Brasil pela Lei Federal nº 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas. Ela prevê que o tratamento deve priorizar abordagens ambulatoriais e que a internação, quando necessária, deve ocorrer apenas de forma excepcional.
A lei também estabelece que a internação involuntária pode ser solicitada por familiares ou, na ausência deles, por um servidor da área de saúde, assistência social ou órgãos do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas. Além disso, exige que a decisão seja fundamentada por laudo médico e comunicada ao Ministério Público no prazo de 72 horas.
Especialista aponta inconstitucionalidade
Para a professora de Direito da UFMG Carla Carvalho, especialista em direito médico e da saúde, a proposta municipal pode ser considerada inconstitucional por invadir competência da União e dos estados.
“A internação involuntária de dependentes químicos envolve questões de saúde pública e defesa da saúde da população, que são de competência legislativa concorrente da União e dos estados. Não cabe ao município legislar sobre esse tema”, explica a especialista, que também questiona a necessidade da proposta, já que a regulamentação federal existente já define as regras para a internação involuntária.
“O projeto de lei municipal basicamente repete a legislação federal, sem acrescentar qualquer peculiaridade local que justificasse uma norma própria. O ideal seria que o município direcionasse seus esforços para a aplicação adequada da lei federal, em vez de tentar criar uma nova legislação que, na prática, não traz nenhuma inovação”.
A professora ressalta que propostas semelhantes já foram derrubadas em outras cidades por decisão do Judiciário, justamente pela falta de competência dos municípios para legislar sobre o tema.
“Temos diversos precedentes de leis municipais que tentaram regulamentar a internação involuntária e foram consideradas inconstitucionais. Caso aprovado, esse projeto de Belo Horizonte provavelmente enfrentará questionamentos na Justiça e poderá ter sua aplicação barrada”, disse.
O projeto ainda precisa ser analisado em comissões antes de seguir para votação em plenário.
Questionamento de constitucionalidade
A advogada e enfermeira sanitarista Wilma Dantas, professora da PUC Minas, destaca que a regulamentação da internação voluntária e involuntária de dependentes químicos deve seguir as diretrizes estabelecidas pela legislação federal e estadual.
Segundo ela, a Constituição de 1988 define a competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde, cabendo à União estabelecer normas gerais e aos estados e municípios complementá-las dentro de suas esferas de interesse.
“Apesar de o artigo 24 da Constituição não citar explicitamente os municípios, eles podem legislar sobre o tema desde que seja no âmbito do interesse local, respeitando as normas gerais federais, como a Lei nº 10.216/2001 e a Lei nº 13.840/2019", explica. No entanto, segundo a especialista, a legislação municipal não pode contrariar ou modificar o que já está definido pelas normas gerais.
“A dignidade da pessoa humana é um dos pilares da Constituição de 1988 e, diante das violações históricas contra pessoas com transtornos mentais antes da reforma antimanicomial, o tratamento ambulatorial deve ser sempre prioridade”, pontua a advogada.
Ela ressalta que a internação involuntária, conforme previsto na lei federal, só pode ocorrer mediante formalização de um médico, que deve avaliar o caso e indicar a internação apenas se as alternativas terapêuticas disponíveis forem insuficientes. Além disso, o prazo máximo permitido por lei é de 90 dias, sendo que a família ou o representante legal pode solicitar a interrupção do tratamento a qualquer momento.