O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) criou regras para o uso de inteligência artificial (IA) nas campanhas eleitorais, de forma que todo e
Camilo Aggio é professor e pesquisador da UFMG, com estudos em comunicação, democracia e especificamente teorias conspiratórias e desinformação. Em entrevista à Itatiaia, o especialista diz que o Judiciário precisa estar munido de recursos e conhecimento para criar instrumentos de constrangimento e, com isso, impedir que aqueles que queiram pleitear um cargo eletivo pensem várias vezes antes de apelar para recursos desse tipo.
Confira a entrevista completa:
Que tipo de ameaça a democracia sofre quando há desinformação sendo amplamente propagada, principalmente em contexto eleitoral?
A primeira coisa é o tipo de poluição, de quantidade de ruídos e de como o debate público acaba sendo desvirtuado, tendendo a gerar insegurança, em razão, justamente, dos desafios que a confusão informacional provoca na possibilidade de construirmos um repertório comum sobre o que é verdadeiro e falso.
O maior problema é o potencial da desinformação de desorientar, de provocar acirramentos grupais. O modo como as pessoas se organizam em grupos muito coesos e convictos das suas próprias ideias e o modo como se dá o confronto com tudo o que é contraditório, também é abalado. O contraditório é fundamental e, nessa perspectiva, ele acaba sendo não uma provocação que nos faz refletir e refinar o nosso conhecimento, mas vira um problema que divide, segrega, e implica nessas fraturas que não deveriam existir na esfera pública, em qualquer experiência que se pretenda democrática.
A comunidade científica tem se dedicado cada vez mais ao tema da desinformação. Que aprendizados já são possíveis tirar?
Vários e minha resposta vai desagradar a muitos. Por muito tempo elegemos a desinformação como um grande problema, mas pelas razões erradas. Em 2018, não foram poucos os colegas de pesquisa, colunistas e jornalistas que diagnosticaram a vitória de Jair Bolsonaro com base numa ideia de que as pessoas teriam sido manipuladas pelas fake news. Acho que é uma conclusão apressada e que simplifica um problema muito maior.
Não é que essas pessoas sejam manipuladas. Elas podem até ser confundidas, mas tente convencer uma pessoa de convicções fortes — e elas não precisam ser exatamente políticas, mas também ideológicas, com relação à crise climática, medicamentos etc. — apresentando um conjunto de evidências e consensos. É difícil. Você pode até convencer, mas até a próxima fake news aparecer.
E não é que as pessoas não estejam expostas ao contraditório, não significa que elas estão presas numa bolha em que elas ouvem apenas o próprio eco. Pelo contrário, elas ouvem o contraditório, mas tem muitas fontes de informação, equivocadas ou não, que reforçam suas crenças, que os fazem vinculados a determinado grupo.
Qual é a solução para esse tipo de problema?
Regulação das plataformas. Mas aí é que está outro problema: grande parte da produção de conteúdos nocivos em termos democráticos e políticos não vem a reboque apenas das pessoas que estão produzindo isso, apenas em razão das suas convicções, mas porque aquilo gera um conjunto de recompensas sociais.
E a IA nessa história? Na sua produção de conhecimento sobre o assunto, como você avalia o uso de IA nas campanhas eleitorais?
Em termos de obstáculos, o grande desafio é o modo sofisticado e inteligente com que a IA pode ser utilizada para produzir conteúdo falso. A própria verificação e identificação de uso dela é difícil, e existe um enorme potencial de gerar repercussões enganosas. Os efeitos ainda estão por vir.
Por outro lado, existe um conjunto de possibilidades de aplicação da IA voltado para conter um problema que a própria IA vem criando. O paradoxo é isso. Os transtornos advindos da utilização da IA podem ser contidos pela própria utilização de uma outra maneira dessa mesma IA.
Temos que levar em conta o componente humano, os usos sociais. Quando pensamos em sociedades complexas, em normas democráticas, não podemos deixar de considerar o poder que o Estado deve ter sobre as regulações e o alcance de constrangimentos legais para que esse tipo de tecnologia seja utilizado com ética.
Mas as regras do TSE são eficazes para ao menos começar esse trabalho?
Os órgãos não estão preparados. São profissionais que atuam em outro tipo de área, não entendem a profundidade dos desafios que a comunicação apresenta, quais desafios são, a razão pela qual eles existem, como solucioná-los, etc. O diálogo com a comunidade científica melhorou, mas ainda é ineficiente. Não é um problema que você resolve com medidas judiciais apenas em um determinado momento. Estamos tratando de problemas que precisam ser solucionados com auxílio daquele campo profissional específico, que é o da Comunicação.
Embora as articulações entre Estado e Judiciário e a comunidade científica tenha melhorado de 2018 para cá, ainda acho que é incipiente, talvez nós, especialistas, não sejamos devidamente ouvidos a ponto de fazermos articulações importantes e cooperarmos para solucionar esses problemas. Mas é claro, estamos num lugar melhor do que no passado.
Não dá para contar apenas com a atuação do Judiciário com base nos constrangimentos legais. É preciso criar mais ferramentas e não tem como fazê-lo sem vínculos de cooperação permanentes com pessoas que entendem dessas ferramentas, com pessoas que detém conhecimento constantemente atualizado e que certamente podem contribuir.
E a classe política? Está devidamente pronta para esse debate?
Não dá e não estará. Não são poucos os parlamentares que acabam se beneficiando profundamente de recursos antiéticos. Muitos deles investindo na produção profissional de informações falsas, distorcidas, caluniosas, fake news. O Judiciário precisa estar munido de recursos e conhecimento para criar instrumentos de constrangimento e, com isso, impedir que aqueles que queiram pleitear um cargo eletivo, pensem várias vezes antes de apelar para recursos desse tipo.
Em Minas Gerais, por exemplo, o deputado Nikolas Ferreira (PL), que foi um parlamentar bem votado, ele é um candidato digital, é um garoto que demonstra que, para se tornar deputado federal, você não precisa ter uma grande carreira numa grande agremiação partidária. Ou seja, o tipo de capital e reconhecimento que se tem, o modo como ele é convertido em capital eleitoral hoje, pode prescindir de muitas das etapas tradicionais. Isso mudou radicalmente. É possível ser um youtuber, um influencer e se tornar, portanto, um sujeito que converte seu capital social em capital eleitoral.
O quão mais importante é ocupar uma comissão parlamentar, ou aprovar projetos de lei, do que criar fatos para consumo nas redes digitais? Num geral, a partir de antagonismos rasteiros. Existe a tendência de consumo da política numa lógica de nicho, e ela tem degradado a possibilidade de construir discussões comuns.