Ouvindo...

Finlândia combate fake news desde o ensino básico

Projeto educacional inclui a educação midiática em todas as disciplinas

País busca orientar jovens para que identifiquem fake news

Uma disciplina incluída no currículo escolar da Finlândia em 2016 tem ajudado o país a ser o mais resistente à desinformação entre as 41 nações da Europa pela quinta vez consecutiva. A educação midiática chegou às escolas finlandesas depois que uma onda de notícias falsas invadiu o país após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014.

Leia mais:

Muito conteúdo enganoso surgiu nos sites locais e nas redes sociais para influenciar o debate público. A ação rápida do governo deu resultado: o estudo anual do instituto Open Society classificou o país como mais resistente a informações falsas no continente e a pequena nação se tornou referência mundial no combate às fake news.

Os outros países europeus com alta resiliência a notícias falsas são Noruega, Dinamarca, Estônia, Irlanda e Suécia. Os mais vulneráveis, por sua vez, são Georgia, Macedônia do Norte, Kosovo, Bósnia e Herzegovina e Albânia. Entre os aspectos avaliados pela pesquisa estão liberdade de imprensa, nível de confiança na sociedade e pontuações em leitura, ciências e matemática.

A estratégia da Finlândia foi passar a tratar a educação midiática em todas as disciplinas no ensino básico com o objetivo de desenvolver o pensamento crítico dos alunos. Enquanto matemática ensina como estatísticas podem ser distorcidas, história apresenta campanhas de propaganda para explicam como determinados elementos — palavras, imagens, metáforas — são usados para influenciar.

Embora crianças e adolescentes de hoje tenham crescido em meio às mídias sociais, isso não significa que sabem identificar e se proteger contra vídeos manipulados no TikTok, por exemplo. Um estudo publicado no Jornal Britânico de Psicologia do Desenvolvimento indica que a adolescência pode ser um momento de pico para a teoria da conspiração.

Nesse cenário, um fator contribuinte pode ser a mídia social, que influencia as crenças dos jovens sobre o mundo. Aqui no Brasil, uma pesquisa da Universidade Federal de Lavras (Ufla) questiona a existência de nativos digitais — uma vez que muitos creem que alguns indivíduos já nascem com habilidades especiais relacionadas a tecnologia.

Na Finlândia, os alunos têm de pesquisar sobre determinados temas e apresentar fontes sólidas. A intenção é que se tornem detetives digitais: exercícios pedem o exame de alegações encontradas em vídeos de YouTube e em posts de redes sociais, o viés da mídia em notícias que apenas buscam cliques e a análise de como a desinformação ataca as emoções do leitor. Outra proposta é que os estudantes escrevam notícias falsas.

Como os professores atuam

Saara Martikka, professora em Hameenlinna, discute notícias com os jovens. “Não é porque se trata de uma coisa boa ou legal que seja verdade ou válida”, explica ela, em entrevista ao The New York Times. Em uma de suas aulas, ela mostrou três vídeos do TikTok aos estudantes para debater sobre as motivações dos criadores e os efeitos que o conteúdo causou neles — sempre com o objetivo de ajudá-los a aprenderem a identificar desinformação.

Em uma atividade, Saara pediu que os alunos editassem vídeos e fotos para verem como é fácil manipular informação. Já Anna Airas, professora em Helsinque, discutiu com os estudantes como os algoritmos de busca funcionam e por que os primeiros resultados podem não ser confiáveis. Outros professores usaram sites russos e memes durante a guerra na Ucrânia como base para uma discussão sobre os efeitos da propaganda governamental.

A professora Mari Uusitalo, de Helsinque, avalia que desenvolver o conteúdo para os estudantes é um desafio. “É muito mais fácil falar de literatura, que estudamos há séculos”, aponta. Ela conta que ensina aos alunos a diferença entre o que veem no Instagram e no TikTok e o que é publicado nos jornais. “Para entender fake news ou desinformação, eles precisam entender a relação entre mídias sociais e jornalismo.”

Ela moderou uma discussão sobre vídeos em que Sanna Marin, primeira-ministra da Finlândia, aparece dançando e cantando em uma festa. Eles falaram sobre como notícias surgem de vídeos que circulam em redes sociais. Após ver as imagens, alguns estudantes acreditavam que Sanna havia consumido drogas. A primeira-ministra negou e um teste teve resultado negativo.

Mari diz que notou, nos 16 anos em que atua na área, redução nas habilidades de compreensão de texto — ela atribui isso ao fato de os jovens passarem menos tempo com livros e mais com jogos e vídeos. “Com capacidades diminuídas de leitura e períodos de atenção mais curtos, eles estão mais vulneráveis a acreditar em notícias falsas ou não têm conhecimento para identificá-las.”

Ela pontua que seu objetivo é ensinar aos alunos formas de diferenciar verdade e ficção. “Não posso fazê-los pensar como eu”, explica. “Tenho de dar a eles as ferramentas para que possam desenvolver suas próprias opiniões.”

Na Finlândia, 71% dos residentes confiam no governo — a média dos países que participam da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 41%. Em contrapartida, no Brasil, 34% confiam no governo e 41% nos veículos de comunicação.

Sistema transversal

Na Finlândia, a educação midiática começa com as crianças e vai até os adolescentes. O objetivo não é que todos os finlandeses desacreditem de tudo o que é dito pela Rússia ou acreditem em tudo o que o governo finlandês diz. A ideia é fazer que a sociedade não aceite todas as informações de forma passiva.

Leo Pekkala, diretor do Instituto Nacional do Audiovisual da Finlândia, que supervisiona a educação midiática, lembra que professores de todas as áreas participam do processo. “Não importa se o profissional está ensinando educação física, matemática ou linguagem, ele tem de pensar em como incluir esses elementos no trabalho com os alunos”, afirma.

Segundo Kari Kivinen, integrante do grupo de combate à desinformação e promoção da educação digital da Comissão Europeia, o objetivo é que os estudantes se perguntem quem produziu a notícia, por que e se há provas do que é dito ou se se trata de uma opinião. “Queremos que nossos alunos pensem duas vezes antes de compartilhar uma notícia”, resume.

Em uma entrevista ao jornal inglês The Guardian em 2020, Kivinen, que então era diretor da escola franco-finlandesa em Helsinque, afirmou que o objetivo é desenvolver cidadãos e eleitores críticos, proativos e responsáveis. “Pensar criticamente, verificar, interpretar e avaliar todas as informações que você recebe, onde quer que elas apareçam, é crucial. Fizemos disso uma parte central do que ensinamos, em todos os assuntos”, explica.

Estudantes são o grupo mais fácil de atingir — uma vez que estão na escola. Segundo Pekkala, depois que iniciou o programa nas instituições de ensino, o governo passou a usar bibliotecas como centros para ensinar idosos a identificarem informação online que tenha a intenção de enganar.

Centro de pesquisa

Outro pilar do combate à desinformação na Finlândia é a Agência Nacional de Suprimentos de Emergência. O órgão tem um centro de pesquisa voltado à “resiliência da informação”, que desenvolve estratégias de verificação de fatos e informações sobre campanhas de desinformação inovadoras em parceria com empresas privadas e ONGs.

Segundo a pesquisadora Gwenaëlle Bauvois, as novas estratégias visam, por exemplo, combater a desinformação veiculada em jogos online. “O principal objetivo dessa iniciativa é oferecer ferramentas e procedimentos ao público, às autoridades e aos meios de comunicação para enfrentar e combater a desinformação agora e no futuro”, reforça.

O centro foi criado depois que a agência identificou que, para lidar com notícias falsas, é preciso cooperar para o desenvolvimento de competências de empresas, autoridades e organizações de comunicação social. As parcerias unem governo, empresas privadas e ONGs em um processo semelhante ao desenvolvido no Brasil pelas agências de verificação de fatos.

Paivi Leppanen, coordenador de projeto da Agência Nacional Finlandesa para a Educação, destaca o momento em que notícias falsas russas atingiram, entre outros, a tentativa da Finlândia de participar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). “Isso mostrou que esse era o momento para o qual havíamos nos preparado.”

Entre as vantagens da Finlândia no combate à desinformação estão a alta confiabilidade no governo e a alta respeitabilidade aos professores. Cerca de 5,4 milhões de pessoas falam finlandês, o que facilita a identificação de conteúdo com informação falsa escrito por não nativos graças aos erros gramaticais e de sintaxe.