Lima Barreto publicou, em 1911, o conto “O Homem Que Sabia Javanês”, trazendo-nos uma visão crítica da sociedade brasileira, especificamente da arte de ludibriar. A obra se passa em uma confeitaria, onde dois amigos conversam numa mesa.
Castelo, o narrador, relata ao amigo Castro “as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver”, ou seja, as peripécias e artimanhas para ascender socialmente, até alcançar a posição de cônsul. Ele conta que, apesar de desconhecer a língua javanesa, fingiu ensiná-la a um velho barão para que este pudesse ler um antigo livro escrito nessa língua:
Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!...
Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!
Início da República
O barão, como forma de gratidão, incluiu o narrador em seu testamento e na carreira diplomática, através de suas relações com pessoas influentes:
O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.
Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia.
Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. - “Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!”. Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.
Mais que irônico, Lima Barreto denuncia caricaturalmente as dificuldades das primeiras décadas da República, criticando a elite intelectual brasileira, forjada no falso brilho, trazendo uma narrativa satírica da malandragem reinante na sociedade e o descompromisso com a verdade. O autor critica a supervalorização das formas, da aparência, a desonestidade intelectual, a prática da esperteza e da autopromoção.
Profissões atuais
O enredo se reproduz nas profissões atuais como uma patologia dos novos tempos. O fenômeno já atinge, por exemplo, a
O problema é ainda mais evidente no
Aliás, os alunos dos coachs de hoje são como o barão descrito no conto. Ele desiste de aprender javanês e então se contenta em ouvir literatura javanesa traduzida por um homem que não sabia javanês.
Apadrinhamento
A mesma dificuldade atinge os manuais de doutrina, que se tornam cada dia mais escassos; afinal, lê-los exige tempo, dedicação e, claro, ausência do celular, o mais difícil. É muito mais fácil ler os resumos dos resumos. Entretanto, conhecer minimamente o direito pressupõe dizer não aos “facilitadores” do aprendizado, à cultura do imediatismo, à ausência de reflexão.
Além disso, no texto de Lima Barreto há uma importante crítica ao apadrinhamento em detrimento da meritocracia, condizente com a própria vida do escritor, o qual, intelectual, observador da cultura popular e originário de escravos, escreveu em seu diário: “É triste não ser branco”. O autor possuía limitadas possibilidades de ascensão social e profissional, o que o levou ao alcoolismo, sendo preterido, inúmeras vezes, a promoções no trabalho e, em três oportunidades, ao ingresso na Academia Brasileira de Letras.
Nepotismo
O texto, escrito há mais de 100 anos, revela-se atual, pois ainda ocorre, em alguns setores da administração pública, as manifestações de apadrinhamento, em que o status de quem indica vale mais que o conteúdo que o indicado apresenta. Basta lembrar que, há pouco tempo, não havia qualquer limitação relacionada ao grau de parentesco porventura existente entre a pessoa nomeada e o agente público nomeante, havendo certa tolerância com o chamado “nepotismo”.
Tal palavra tem origem no latim. Deriva da conjugação “nepote” e significa sobrinho ou protegido. A adição do sufixo “ismo” remete à ideia de ato, prática ou resultado, em razão de uma relação exclusivamente pessoal, portanto não republicana.
O termo, historicamente, advém da autoridade exercida pelos sobrinhos e outros aparentados dos Papas na administração eclesiástica, nos séculos XV e XVI, nomeados sem qualquer preocupação com os elementares preceitos de boa gestão.
Prática vedada
Em 2008, foi editada pelo STF a Súmula Vinculante 13, vedando o nepotismo, ou seja, a nomeação de parentes até determinado grau, da autoridade nomeante, em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas.
A decisão foi um grande avanço na concretização dos princípios constitucionais da impessoalidade, igualdade, moralidade e eficiência administrativa, os quais não toleram – porque incompatível com o espírito republicano e com a essência da ordem democrática – o exercício do poder para interesses pessoais.
Apadrinhamentos indiretos
Todavia, ainda podem ocorrer os apadrinhamentos indiretos, não pautados no grau de parentesco, mas exclusivamente nas relações de afetos ou interesses. Daí a necessidade de um olhar atento dos profissionais do direito para situações não enquadráveis na súmula vinculante n.13 do STF, mas que evidenciam a prática tendente a confundir a esfera privada com a pública.
E esse olhar atento é importante no nosso dia a dia, seja nas escolhas dos funcionários, dos homenageados, das promoções; seja, quando nos afastamos do critério único do mérito atestado em concurso – por meio do qual se garante a efetividade do direito à igualdade – regra incontrastável; seja pelos currículos dos postulantes, deixando que o personalismo prospere. Daí a importância de objetivação cada vez maior dos nossos critérios de escolha. Essa busca da impessoalidade e da competência deve ser diária.
Ops. Nesta semana do aniversário de Lima Barreto, fico a imaginar o escarcéu que ele provocaria no Brasil de hoje, denunciando as diversas formas de exclusão e preconceitos ainda reinantes na sociedade brasileira. Que falta ele nos faz...