Ouvindo...

A voz encantadora das ruas

É na rua que ‘se fazem negócios, nela se fala mal do próximo, nela mudam as ideias e as convicções, nela surgem as dores e os desgostos, nela sente o homem a maior emoção’

A rua

“A rua...
Cumprida, cumprida, atua...
Olê! complicada, complicada, alua
A rua
Nua!”

João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), mais conhecido como João do Rio, um dos escritores mais importantes do início do século XX, publicou a divertida crônica “A alma encantadora das ruas”, em 1908. Nela, ele fala do seu amor pelas ruas, um lugar que nos une, nivela e agremia; o “único capaz de resistir às idades e às épocas”. Ao destacá-las como protagonista na vida das cidades, o autor as descreve como seres vivos com alma, apesar de imóveis, capazes de sentir as luzes e sombras de nossa existência, pois pensam, têm ideias, filosofia e religião.

Essa gostosa crônica sempre me vem à mente quando ando pelas ruas da nossa cidade, normalmente permeado por passadelas em algumas feiras e mercados. É que andar pelas calçadas é ver a essência do cotidiano, com o seu movimento, voz, miséria e alegria. É na rua que “se fazem negócios, nela se fala mal do próximo, nela mudam as ideias e as convicções, nela surgem as dores e os desgostos, nela sente o homem a maior emoção.” Só os caminhos da cidade são capazes de matar substantivos, transformar “a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros”, dando-nos “luz, luxo, bem-estar, comodidade e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.” Talvez por isso João do Rio fosse tão enfático ao destacar que, para conhecer a cidade, é preciso caminhar, misturar-se ao povo, ouvir seus murmúrios, observar seus gestos.

Essa crônica, escrita há mais de um século, permanece atual, na medida em que as autoridades públicas, inclusive do Direito, estão cada vez mais distantes da “vida como ela é”. Muitas vezes, quem acusa, defende ou julga, tem um cotidiano totalmente abstraído da vida das cidades, a começar pelos condomínios, passando pelos bairros das classes mais abastadas, tudo permeado por escritórios bem protegidos. O sujeito não desce do carro nem para ir à farmácia... Essa realidade gera um distanciamento da vida sem retoques, do real sem adornos, pois a realidade jamais é captada por papéis frios e relatórios investigativos. Ela não está presente nos gabinetes, pois a urgência das ruas só é sentida quando por ela palmilhamos, permitindo-nos escutar o murmúrio coletivo que se espalha desde as avenidas, passando pelas vielas e becos, vendo e sentindo as ruas sem iluminação, o transporte precário, a insegurança das praças e até o improviso dos ambulantes para ganharem o pão. Nesse aspecto, os políticos têm vantagem, pois “todos quantos querem subir, galgar a inútil e movediça montanha da glória, anseiam pelo juízo da rua, pela aprovação da via pública, e há na patologia nervosa uma vasta parte em que se trata apenas das moléstias produzidas pela rua, desde a neurastenia até a loucura furiosa.”

Agora, para saber a qualidade dessas artérias urbanas, não basta conhecê-las vagamente, de relance ou de memória dos tempos idos. É preciso por elas palmilhar, sem pressa, flanando de posse do vírus da observação, em meio às rodas da populaça:

- “É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar.”

Outro detalhe interessante que João do Rio nos apresenta é a necessidade de percorrê-la à noite, quando ela nos revela seus segredos mais recônditos:

“A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há trechos em que a gente passa como se fosse empurrada, perseguida, corrida — são as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras que se envolvem no mistério logo que as sombras descem”

E como o tema de hoje é mais leve, quem, ao tratar das ruas, não se lembra da sua infância? Era nela que brincávamos e até forjávamos uma gostosa disputa com os arruamentos vizinhos, algo que também tocou João do Rio:

- “As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como para inimigos. Em 1805, há um século, era assim: os capoeiras da Praia não podiam passar por Santa Luzia. No tempo das eleições mais à navalha que à pena, o Largo do Machadinho e a Rua Pedro Américo eram inimigos irreconciliáveis. Atualmente a sugestão é tal que eles se intitulam povo. Há o povo da Rua do Senado, o povo da Travessa do mesmo nome, o povo de Catumbi.”

Ou também, quem não rememora as esquinas do início da adolescência que recebiam nossas confidências, o cheiro das balas baratas, os primeiros beijos, as gargalhadas contidas, numa estranha mistura de culpa e alegria que só o despertar para a vida conhece. Ou então as ruas da nossa adolescência com seus segredos que nenhum diário ousaria escrever. Hoje, revendo-as, elas nos parecem pequenas, mas naquela época eram o mundo inteiro. Naquelas ruelas, numa fase, a bola perdia-se sob os carros, num instante em que tínhamos tanta pressa de crescer antes da hora. Em outro, já cometíamos ali alguns desvarios noturnos, fruto de um precoce excesso alcoólico por exemplo. Apesar da ressaca física e moral, estávamos a postos na manhã seguinte para novamente encara-las, como se nada tivesse acontecido. Aliás, foi justamente encarar as ruas após uma noitada que levou João do Rio a dizer que as calçadas são a eterna imagem da ingenuidade, pois, apesar de toda a farra noturna, “a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões — tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos...

Bom, é esse o convite do dia, caro leitor, e se nada disso o convenceu, quem sabe o poema de Manoel de Barros, “O fotógrafo”, não o desperte para reviver as cenas e pessoas breves, efêmeras, despretensiosas com as quais nos deparávamos quando andávamos pelas ruas. Ele começa com uma cena insólita, nas ruas de uma madrugada qualquer. Um bêbado caminha auxiliado pelo silêncio, não por um amigo:

“Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado./ Preparei minha máquina./ O silêncio era um carregador?/ Estava carregando o bêbado./ Fotografei esse carregador./ Tive outras visões naquela madrugada./ Preparei minha máquina de novo...

O poeta aqui nos fala da tentativa de capturar o que nos é quase invisível, o imaterial que a noite das ruas nos revelam. E ele viu muito, pois o poema segue: “Tive outras visões naquela madrugada./Preparei minha máquina de novo”. E por aí vai...

Ops. Cumpri o prometido, um tema mais leve, quase despretensioso, apesar de assunto não faltar nesse nosso Brasil de tantas novidades.

Ops. Nesta semana de tantas mensagens publicizadas de whatsapp, algumas carregadas de palavrões, Millôr Fernandes, se vivo fosse, completaria 102 anos. O maior frasista do Brasil:

-“Desconfie de todo idealista que lucra com seu ideal”;

-“Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos”

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.