Julio César, o vitorioso imperador, ao voltar das batalhas, era recebido em Roma, aclamado pelo povo. Ele desfilava no carro puxado por quatro cavalos brancos, desde o Campo de Marte até o Capitólio, tendo o cetro da águia do deus em sua mão e o rosto tingido de vermelho. Junto a ele, na biga, um escravo, a cada 500m do percurso, sussurrava-lhe: “Olha para trás de ti. Lembra-te de que és um homem”
A advertência permite a moderna paráfrase: “Olha para os lados e olha para frente de ti. Lembra-te de que ainda és uma pessoa humana”.
No mundo do direito, essa reflexão deve ser permanente, pois a área é uma fonte inesgotável de egos e vaidades. Basta observar o formalismo, a suntuosidade das solenidades e os longos discursos. Isto sem falar daqueles que exigem o uso de determinado pronome de tratamento, ainda que fora do local de trabalho. As manifestações narcísicas abundam por toda parte, normalmente sob o véu da “necessidade de manter a tradição”. Ainda há os que assinam com o epíteto de “Doutor”...
A razão me parece clara: o direito lida com enorme espectro de poder. Através dele, decide-se a liberdade, o patrimônio, a saúde, enfim, os bens mais caros a todos nós. Consequentemente, os riscos às tentações aumentam exponencialmente, em especial o esquecimento ao princípio constitucional da igualdade, direito fundamental que abre o art.5º, “caput”, da Constituição Federal com a clássica expressão “todos são iguais perante a lei”, especificando-se que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. O objetivo da ideia de igualdade é peremptório: propiciar garantia individual contra perseguições e tolher favoritismos, ou seja, desigualdade de situações correspondentes, sujeições desmedidas, relações de dominações, casuísmos.
Todos nós somos providos de vaidades. E não há nisso nenhum problema, salvo quando ultrapassa os limites do aceitável, levando ao abuso de autoridade, à exposição midiática, ao assassinato de reputações, à intolerância, ao arbítrio, enfim, a condutas incompatíveis com a realização da justiça.
No filme “O Advogado do Diabo”, um talentoso jovem advogado é contratado por um poderoso escritório de advocacia, enredando-se nas malhas das forças do mal. A cena final é reveladora. Quando tudo retorna ao começo, Kevin Lomax (Keanu Reeves) olha-se a si próprio, como num espelho, em suposta analogia à lenda grega de Narciso, que ficou tão hipnotizado por sua imagem refletida na água que acabou se afogando. Em seguida, John Milton (Al Pacino), interpretando o demônio, toca-lhe no ego, mais uma vez, e conclui, em voz baixa: “Vanity, definitely my favorite sin!”, ou seja, “Vaidade, definitivamente meu pecado preferido!”.
Daí o desafio diário dos profissionais do direito: esvaziar o temerário sentimento de poder. A consciência talvez seja o pressuposto nesta disputa, lembrando-nos sempre do trecho do poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, que diz:
Fiz de mim o que não soube/E o que podia fazer de mim não o fiz./O dominó que vesti era errado./Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./Quando quis tirar a máscara,/Estava pegada à cara.