Ouvindo...

Entre o Espelho e o Poder: a busca pelo inalcançável

Enredo da personagem Gisela Argento é um exemplo de como a pressão estética pode ser usada como ferramenta de controle psicológico

A novela “Beleza Fatal”, escrita por Raphael Montes, é um sucesso da plataforma de streaming Max e, devido à grande repercussão, chegou também à televisão aberta. A trama se desenrola no universo da estética e dos tratamentos de beleza, levantando questões cruciais sobre os padrões estéticos impostos, os interesses financeiros por trás dessa indústria e os extremos a que essas imposições podem levar, como a dismorfia corporal – um transtorno que faz com que a pessoa tenha uma visão distorcida e obsessiva da própria aparência.

O enredo da personagem Gisela Argento, uma dermatologista que abandonou a profissão e vive subjugada ao marido Rog – um esteticista manipulador que mina sua autoestima com humilhações constantes – é um exemplo claro de como a pressão estética pode ser usada como ferramenta de controle psicológico. A busca incessante de Gisela por procedimentos estéticos, sem nunca alcançar a validação desejada, reflete o ciclo cruel em que muitas mulheres se encontram: uma dependência emocional e estética que reforça a sensação de inadequação e vulnerabilidade.

Leia também

Fora da ficção, a própria atriz que interpreta Gisela, Júlia Stockler, compartilhou em entrevista uma experiência pessoal que ecoa o tema da novela. Aos 18 anos, ouviu de uma produtora de elenco de uma grande emissora que deveria diminuir o nariz para ser protagonista. Sua recusa, e a escolha de permanecer fiel a si mesma, representa um ato de resistência em meio à pressão estética do mercado audiovisual.

Essa narrativa, tanto na vida real quanto na ficção, revela um fenômeno muito discutido por Naomi Wolf em “O Mito da Beleza”. A autora argumenta que, à medida que as mulheres conquistaram avanços no mercado de trabalho e no campo dos direitos civis, surgiu uma nova forma de opressão: a exigência de que se mantenham dentro de padrões estéticos inalcançáveis. Esse sistema, alimentado pela mídia e pela indústria da beleza, aprisiona as mulheres em uma busca constante por juventude e perfeição, desviando sua energia e atenção de outros campos de poder e autonomia.

E o ciclo se intensifica no campo profissional: no início da carreira, as mulheres precisam lidar com a ideia da meritocracia, provando constantemente sua competência para conquistar espaço. Porém, quando finalmente alcançam o ápice da experiência e do amadurecimento, deparam-se com uma nova barreira, formada pelo preconceito etário e a valorização desproporcional da juventude. Ou seja, ao atingirem sua maturidade profissional, muitas ainda enfrentam a cobrança por manter uma aparência jovem, como se o valor da mulher no mercado estivesse atrelado à estética e não à sua trajetória ou habilidades.

Ou seja, para além do teto de vidro, a cobrança pela imagem ideal, segundo a qual as mulheres devem ser bonitas a qualquer custo, não é apenas uma questão estética, mas também uma barreira silenciosa à equidade. A aparência física, segundo pesquisas, ainda influencia promoções, salários e a percepção de competência, especialmente em ambientes corporativos competitivos.

Por isso, a mensagem central que “Beleza Fatal” e “O Mito da Beleza” nos oferecem é clara: cuidar da aparência não é um problema, desde que esse cuidado venha de um lugar de autoconsciência e bem-estar, e não da submissão a uma lógica que lucra com a insegurança feminina em busca de padrões inalcançáveis. Romper com esse ciclo é um ato de resistência e de liberdade.

A verdadeira beleza está na pluralidade e na autenticidade. Valorizar quem somos, independentemente de padrões externos, é uma escolha poderosa que fortalece nossa autoestima e nos liberta da constante busca por validação. Tão importante quanto é saber parar de se julgar quando as próprias expectativas não são alcançadas – sejam elas relacionadas à aparência física ou ao progresso na carreira, que às vezes não é tão rápido quanto o desejado.

Outro conselho é parar de julgar os outros, pois essa é uma armadilha segundo a qual você espera algum reconhecimento no outro, sendo que só temos controle sobre nós mesmos. Empodere-se, seja dona da sua imagem e da sua história. A beleza real não está na aprovação alheia, mas na coragem de ser você mesma — completa, suficiente e livre.

Clarissa Nepomuceno é advogada e sócia do escritório Nepomuceno Soares Advogados. Palestrante e professora universitária, defende que a independência financeira e a construção da carreira são fundamentais na ruptura dos ciclos de violência e para o alcance do ODS 5 – Equidade de Gênero.
Leia mais