No subsolo de três edifícios do centro de Belo Horizonte, repousam as camadas mais profundas de uma história que poucos conhecem. São espaços silenciosos, construídos para proteger vidas em tempos de guerra, ocultos sob nomes indígenas que, por si só, já guardam ecos de um passado anterior à própria cidade. Acaiaca. Indaiá. Tupinambás. Três palavras de origem tupi. Três edifícios erguidos entre 1943 e 1947. Três abrigos antiaéreos construídos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Mais do que coincidência, há aqui uma síntese reveladora da estética e da ideologia do Estado Novo.
Antes mesmo do decreto. Antes da norma. Antes do medo se espalhar por decreto-lei. Em 1943, o comerciante Firmino Seabra, português radicado em Lisboa, ordenou a construção do primeiro abrigo antiaéreo em prédio residencial do Brasil. Belo Horizonte ainda olhava os céus com inocência, vendo andorinhas e urubus. Seabra enxergou aviões. Mandou erguer um edifício de oito andares com dois compartimentos subterrâneos reforçados em concreto, ventilação artificial e capacidade para 80 pessoas.
No dia 6 de julho de 1943, o jornal O Globo anunciava: “Constrói-se em Belo Horizonte o primeiro abrigo antiaéreo do país”. No mesmo dia, Diário da Noite estampava: “Porões à prova de bombas estão sendo construídos em Minas”. No Correio da Manhã, a manchete era direta: “Edifício antiaéreo”. E o jornal A Noite resumia com espanto: “Já se constrói no Brasil o primeiro abrigo particular para proteger moradores contra possíveis bombardeios”. A imprensa registrou com surpresa. E também com ironia. Uns o chamaram de paranoico. Outros, de visionário.
O prédio recebeu o nome de Tupinambás, em homenagem ao povo indígena que enfrentou portugueses e franceses no litoral brasileiro. Nome de combate. Nome de origem. Nome de país em construção.
O Tupinambás antecedeu o Decreto-Lei nº 4.098, publicado em fevereiro de 1942, que obrigava a construção de abrigos em prédios altos, de uso coletivo ou grande área. A medida foi resposta à entrada do Brasil na guerra. Era o tempo da defesa passiva. Em plena modernização urbana, Belo Horizonte aplicou a norma com rapidez. Os primeiros arranha-céus da cidade nasceram com porões blindados. A legislação encontrou solo fértil num ambiente onde verticalidade, monumentalidade e nacionalismo já estavam em alta. A arquitetura respondeu com concreto armado e símbolos cívicos.
Em 1947, na Avenida Bias Fortes, foi concluído o Edifício Indaiá, projeto do arquiteto Raffaello Berti. Discreto, elegante, carrega no subsolo um abrigo ainda preservado, com argolas de ferro para travamento interno e colunas que lembram um templo invertido. O nome remete a uma palmeira nativa cujas fibras serviam para fazer redes. Indaiá quer dizer fruto que dá fios. Um abrigo entrelaçado entre função e memória vegetal. O edifício expressa a transição entre o art déco e o modernismo funcional. Retém a geometria, abandona os adornos. Ainda assim, carrega a ideia de abrigo desde as raízes.
O mais imponente dos três é o Acaiaca. Iniciado ainda em 1943, com 30 andares e duas cabeças indígenas esculpidas na fachada, tornou-se o edifício mais alto do Brasil por mais de uma década. Seu bunker ocupa 900 metros quadrados sob a Avenida Afonso Pena, projetado para proteger centenas de pessoas. Acaiaca era o nome indígena do cedro-brasileiro. Segundo uma lenda recolhida em Diamantina, uma árvore salvou os primeiros humanos de um dilúvio, abrigando-os em sua copa. Dela nasceu uma nova humanidade. O prédio, projetado por Luiz Pinto Coelho, incorporou essa mitologia ao concreto. Em 2025, seu abrigo foi restaurado e aberto à visitação, tornando-se um museu da paz. Memória subterrânea de uma cidade que aprendeu a guardar seus silêncios.
Há algo de profundamente simbólico nesse trio. Três nomes tupi. Três estruturas verticais. Três abrigos subterrâneos. Uma cidade que olhava para o alto e para dentro ao mesmo tempo. A estética do Estado Novo quis nacionalizar tudo: a arte, os nomes, o espaço urbano. Nessa tentativa de criar uma identidade moderna e brasileira, os bunkers da guerra se tornaram mais do que estruturas de defesa. Tornaram-se cápsulas do tempo. E as palavras indígenas que os batizam funcionam como senhas de acesso a uma história em que arquitetura, política e mitologia se entrelaçam.
Entre a floresta e o concreto, entre o medo e o futuro, os bunkers de Belo Horizonte permanecem. Ainda que em silêncio. Ainda que escondidos.
P.S.
Este texto nasceu de uma visita pessoal ao Edifício Tupinambás, feita com a suspeita de que ali pudesse existir um dos bunkers esquecidos da Segunda Guerra. Estava na porta quando fui abordado por uma moradora que se apresentou como eleitora e contou que seu namorado, Rafael, admirava meu trabalho. Pouco depois, ele entrou em contato. Estava intrigado com a história do abrigo, mas sem provas. Disse que a síndica do prédio não tinha certeza sobre a existência do bunker. Junto com um amigo, Gabriel, decidiu investigar. Começaram consultando as plantas originais no Arquivo Público, onde encontraram apenas a menção a um porão. Eu lhes enviei o esboço inicial do que viria a ser este artigo. Eles seguiram em frente. Foram até a Biblioteca Nacional. E ali veio a surpresa. Encontraram as reportagens originais dos jornais cariocas de julho de 1943. Graças a essa investigação independente, a existência do bunker foi confirmada com base documental. A eles, Rafael e Gabriel, meu profundo agradecimento. E também à síndica do prédio, Catarina Seabra, que não só acolheu as dúvidas como revelou ser bisneta de Firmino Seabra, o próprio construtor do edifício. História que se confirma com arquivo e descendência.
Também fui ao Edifício Indaiá, que possui duas fachadas – uma para a Avenida Bias Fortes, outra para a Rua Santa Catarina. Fui recebido com generosidade pelo síndico, Seu Ronan, que confirmou a preservação do abrigo no subsolo. Assim como no Tupinambás, a memória ali estava viva, mesmo que discreta.
No Acaiaca, conversei com Seu Antônio, figura central na requalificação do edifício e no reconhecimento de sua importância histórica. Seu empenho foi decisivo para que o bunker fosse restaurado e aberto à visitação, transformando um porão de concreto em espaço de memória ativa.
A cidade tem andares acima e andares abaixo. E os que buscam, encontram.
P.S.S.
Não se descarta a hipótese de que outros edifícios de Belo Horizonte também tenham abrigado, em seus subsolos, estruturas de defesa antiaérea. O Decreto-Lei nº 4.098, de fevereiro de 1942, determinava a obrigatoriedade de abrigos em edifícios com mais de cinco pavimentos, grandes áreas construídas ou uso coletivo. Vários prédios centrais da cidade foram erguidos nesse mesmo período e dentro dessas características.
Entre os casos que merecem atenção, estão edifícios como:
• Edifício Vitória (Praça Raul Soares, c. 1945–1947)
• Hotel Itatiaia (Rua da Bahia, início em 1945)
• Edifício Levy (Rua Goiás, 305, concluído em 1947)
• Edifício Miguel Abras Filho (Rua Tupinambás, c. 1944–1946)
• Edifício Alcazar (Rua da Bahia, c. 1945)
Todos foram construídos durante ou logo após a vigência do decreto, com volumetria e funções que os enquadrariam na exigência legal da época. Ainda que não haja confirmação documental da existência de bunkers nesses imóveis, os indícios técnicos e históricos justificam uma investigação mais profunda, especialmente nos acervos da Prefeitura, do Arquivo Público da Cidade e da Biblioteca Nacional.
Essa possibilidade amplia o horizonte da pesquisa e reforça a necessidade de mapear, com mais rigor, os vestígios da política de defesa civil em Belo Horizonte. Afinal, se a cidade foi pioneira nos três casos já comprovados, nada impede que ela tenha abrigado outros bunkers invisíveis — esquecidos não por ausência, mas por falta de escuta. A história está lá. À espera de quem pergunte.