Ouvindo...

“Carpe Diem”

Os crimes mais terríveis do século XX foram cometidos por pessoas comuns que renunciaram a julgar por si mesmas, escondendo-se atrás de ideologias e ordens

“Carpe Diem. Aproveitem o dia rapazes!”

Em 22 de dezembro de 1849, Fiodor Dostoiévski, um dos maiores escritores da história, foi sentenciado à morte e levado para execução pública, com outras cinco pessoas, acusado de integrar uma sociedade secreta de intelectuais que lutava pela democracia na Rússia. Diante do pelotão de fuzilamento, leram-lhe a sentença de morte e o mandaram beijar a cruz. Em seguida, três dentre os prisioneiros foram encapuzados e amarrados aos postes de execução. Um pelotão de fuzilamento apontou-lhes as armas para disparar os tiros. Tudo ocorria num silêncio absoluto. Dostoiévski estava então no seu último minuto de vida (ainda não havia escrito suas grandes obras “Crime e Castigo” e “Os irmãos Karamázov”). De repente, sem nenhuma explicação, soou a retirada e a execução foi suspensa por ordem da tsar Nicolau I. Ele então foi levado à prisão, na Sibéria, para exercer trabalhos forçados.

Imediatamente após a comutação da pena de morte, Dostoiévski escreveu para seu irmão Mihkail uma carta relatando-lhe o “renascimento” em função de sua experiência às portas da morte:

- “Irmão! Não estou desanimado nem deprimido. A vida é vida em toda parte, a vida está em nós, não no que está fora de nós. Terei outras pessoas por perto, e ser um homem entre pessoas e continuar sendo um homem para sempre, não esmorecer nem sucumbir a qualquer infortúnio que me atinja – isso é a vida; essa é a tarefa da vida. Eu entendi isso. Essa ideia se incorporou a mim, penetrou em todo o meu ser.”

Veja o leitor que, muito além de uma carta*, o escrito é um mantra existencial de uma vida que se revelou quando verdadeiramente ameaçada (“Hoje estive nas garras da morte por três quartos de hora; vivi isso com essa ideia; estive no último instante e agora vivo novamente!”). Ao invés de se desesperar, pois enviado ao cárcere sem previsão de saída (só foi libertado cinco anos depois), o escritor russo transformou o sofrimento numa ode à liberdade:

- “Restam-me as lembranças e as imagens que concebi, mas ainda não formulei. Elas vão me dilacerar, é bem verdade! Mas restam-me o coração e o mesmo ser que também pode amar, sofrer, desejar, recordar, e isso é a vida, afinal. On voit le soleil. Agora, adeus, irmão. Não chores por mim!”

Dentre muitas reminiscências, ele se lembrou das brigas ao longo da vida e de como elas eram, diante da iminência da morte, irrelevantes, pois, àquela altura, não havia fel nem rancor em sua alma. Ainda, compartilhou o sentimento de apreço pelas pessoas que passaram por sua vida, dizendo que gostaria de abraçá-las, em especial os seus antigos amigos, sensação que havia, de certa forma, experimentado ao se despedir dos seus companheiros de prisão antes do ato de execução. Em seguida, ele refletiu sobre o tempo desperdiçado, perdido com ilusões e ociosidades:

- “A vida é uma dádiva, a vida é uma felicidade, cada minuto poderia ter sido um tempo de felicidade. Si jeunesse savait! Agora, ao mudar de vida, estou renascendo em outra forma. Irmão! Juro que não hei de perder a esperança, que hei de preservar a pureza de minha alma e de meu coração. Hei de renascer para algo melhor. Essa é toda a minha esperança, esse é todo o meu consolo!”.

Essa belíssima carta me veio ao espírito por ocasião de um momento nostálgico: os 36 anos do lançamento de um filme que marcou a minha juventude, “Sociedade dos Poetas Mortos”, dirigido por Peter Weir. A trama se passa em 1959, em um internato escocês de elite, pautado na “tradição, honra, disciplina e excelência”, cujo conhecimento era simbolizado, no início de cada semestre, por uma vela acessa pelo diretor que ia acendendo cada vela apagada trazida pelos alunos (“a luz do saber”), como se fossem receptáculos do conhecimento dado pelo “mestre”. Em sentido oposto ao modelo pedagógico mecânico e repetitivo adotado pela escola, um professor de literatura, John Keating (Robin Williams), pretendia que os alunos “sugassem a essência da vida”, através de valores humanistas e existencialistas. Logo na primeira aula, o Professor os leva a uma sala de troféus, onde havia fotos de antigos alunos. Lá, ele pede a um dos discentes para ler um poema que dizia:

“Pegue seus botões de rosa enquanto pode./ O tempo está voando./ A estas horas, flores que hoje riem, amanhã estarão mortas”

Em seguida, solicitou que eles se aproximassem dos quadros e observassem as fotografias de jovens fixadas na parede:

- Não são diferentes de vocês, são?

- Porque, rapazes, esses jovens atualmente estão fertilizando narcisos.

- Mas se ouvirem de perto, ouvirão como sussurram o legado deles para vocês. Aproximem-se. Ouçam! (como se as fotografias estivessem falando):

_Carpe...diem. Carpe diem! Aproveitem o dia rapazes.

Imagino que o leitor, astuto como é, esteja franzindo o cenho, intrigado com a costura entre o filme e a carta evocada no início da coluna. Talvez tudo isso — cartas escritas à beira do fuzilamento, poemas sussurrados em salas de aula, rapazes que se despertam para o viver — seja apenas o rumor vago de fragmentos de pensamento que, por teimosia, insisto em reunir. Não sei ao certo. Fato é que ambos, como só é possível através da arte, me fizeram sentir — contra o silêncio do mundo — que há em viver um gesto secreto de ousadia. Eu diria até um ato de coragem. Veja que, nos dois casos, foi o reconhecimento da morte e nossa finitude que possibilitou as reflexões sobre a importância de preservar a nossa autonomia, de sair da posição de alienado, sabedores de que, como bem diz a carta, “a vida está dentro de nós, e não fora”, ou seja, independe de fatores políticos, financeiros ou ideológicos. Há, nos dois casos, uma ode aos compromissos individuais, a não se esconder em ideologias de massa, como se o sujeito não fosse o responsável por suas escolhas pessoais (“no Brasil nada funciona”, “está tudo errado”, “a culpa é sempre do outro”, etc).

No filme, a escola era uma instituição-modelo de massificação do pensamento, produzindo um tipo de sujeito previsível e preparado para o sucesso padronizado, pois os alunos eram treinados à repetição. Logo, aptos a abdicarem de sua autonomia psíquica em nome de um ideal coletivo — neste caso, o sucesso acadêmico e profissional. O que o Professor faz é romper com essa ideia, devolvendo-lhes a responsabilidade de pensar por si, o que também foi dito pelo escritor russo.

Partilho com o leitor destas ideias, num tempo em que pensamentos de massa, algoritmos e identidades performáticas, nos conduzem a seguir “líderes”, sob as mais variadas denominações (coaches, gurus, políticos, jogadores, influencers...). Diante de uma autoridade forte, tendemos a abdicar de nossa autonomia, a não contestar, a aceitar ideias que nos são impostas. Talvez nos falte, muitas vezes, um simples gesto subversivo: ousar pensar por si.

Dada a limitação de espaço, rememoro a cena final do filme, em que todos os alunos sobem nas cadeiras da sala de aula, não como um gesto de rebeldia, mas como símbolo de recusa ao conformismo, à repressão e à morte em vida. Há aqui uma metáfora da nossa possibilidade de mudança em relação à vida quando a observamos em outra perspectiva: “Eu subi até a minha mesa para lembrar a mim mesmo que devemos olhar as coisas de modo diferente”; “Vocês devem se esforçar para encontrar sua própria voz, porque quanto mais esperarem, menos chance terão de encontrá-la.”

A abdicação do pensamento individual, ao longo da história, mostra-nos que os crimes mais terríveis do século XX foram cometidos por pessoas comuns que renunciaram a julgar por si mesmas, escondendo-se atrás de ideologias e ordens que, em vez de ver o outro, veem uma categoria. O que Dostoievsky nos lega na carta é que o homem pode ser livre mesmo no cárcere, desde que conserve a sua alma. O mal começa quando deixamos de ver o outro em sua singularidade, ao adotarmos muletas ideológicas que tentam nos fazer crer cegamente em bandeiras. Deixo aqui essas reflexões, num instante de tantas guerras e genocídios no mundo, em que vozes totalitárias insistem em nos rodear. Aqui e acolá.

Ops. Um dia – há muito, muito tempo – escreviam-se cartas. Quem, com mais de 40 anos, até hoje não sente a alma antiga delas, que nos chegavam pelos carteiros para alumiar nossa curiosidade?

*Carta. Comunicação manuscrita ou impressa, endereçada a uma ou várias pessoas (Aurélio). Se a observação é desnecessária, ouso insinuar que o leitor não nasceu neste século. “Tempus fugit” diria o nosso Professor John Keating.

Ops. Ontem foi Dia dos Namorados. Os normais como eu dizem à amada: “Eu te amo”. Drummond diz: “O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo\ acha a razão de ser, já dividido.\ São dois em um: amor sublime selo\ que à vida imprime cor, graça e sentido”. Eis a genialidade...

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.