A história da Feira Hippie de Belo Horizonte não começou com decreto, edital ou autorização formal. Começou no chão. Em 1969, no auge da repressão da ditadura militar, um grupo de artistas, artesãos e estudantes começou a se reunir na Praça da Liberdade para expor suas criações sobre panos estendidos. Eram tempos de censura e silêncio, e aquela ocupação espontânea, colorida e desobediente, misturando arte, política e experimentação, dizia muito mais do que parecia. Nascia ali um dos fenômenos culturais mais duradouros da capital mineira.
Reconhecida oficialmente em 1973, a feira cresceu, diversificou produtos, atraiu público, incomodou poderosos e gerou renda. Nos anos 1980, chegou a funcionar duas vezes por semana. O espaço, no entanto, já não comportava o movimento. Em 1991, após desgastes no piso e na vegetação da Praça da Liberdade, foi transferida para a Avenida Afonso Pena, onde se firmou como ritual de domingo para milhares de belo-horizontinos.
Hoje são mais de 1.500 expositores fixos e cerca de 60 mil visitantes a cada edição. As barracas, organizadas por cores e setores, tomam conta de 45 mil metros quadrados no coração da cidade. A exigência é clara: tudo precisa ser autoral. Nada de revenda, importado ou industrializado. Só entra quem domina a técnica e produz com as próprias mãos. E essa regra não é capricho. É a razão de existir da feira. Aqui, o que se vende é criação, não mercadoria.
E não se vende só produto. Vende-se história. Como a de Maria das Graças da Silva, considerada a feirante mais antiga em atividade. Presente desde o início, começou vendendo bolsas e cintos feitos com lona de caminhão reaproveitada. Trabalhou grávida até o dia do parto. Voltou quinze dias depois. Criou os filhos com o que ganhou ali. Viu vizinhos de barraca casarem, filhos nascerem, colegas envelhecerem, netos assumirem o ponto dos avós.
Também merece lugar especial na memória da feira Roosevelt Alves Fonseca. Ele começou em 1969, no exato início da ocupação da Praça da Liberdade. Lembra que, naquela época, os produtos ficavam estendidos no chão. Começou ainda menino, com cerca de 12 anos, vendendo cintos de couro. Tinha cabelão, roupas coloridas e espírito hippie, como mandava o figurino da época. Cresceu junto com a feira, amadureceu com ela, e hoje segue presente como testemunha viva de sua origem.
A feira guarda curiosidades que a cidade nem sempre conhece. Já teve duas edições semanais. Já teve edição impressa de jornal próprio. Já foi invadida por produtos industrializados e reagiu com força para manter o feito à mão. Já enfrentou incêndio em barraca de comida, confusão por causa de layout na pandemia e disputa por herança de ponto entre gerações. Já virou mercado, museu, palco, restaurante, galeria e santuário, tudo ao mesmo tempo. É raro ver uma instituição tão viva, tão afetiva, tão resistente.
Porque a Feira Hippie não é apenas um evento. É um modo de estar na cidade. Um espaço onde o centro se reumaniza e o domingo ganha rosto. Onde o comércio é atravessado pela memória, e a economia se constrói em comunidade. Onde os produtos têm cheiro de oficina, textura de mão calejada e valor de vida inteira.
A feira pulsa como a própria cidade. Nela, o asfalto vira calçada, a rua vira praça e a multidão vira vizinhança. Não é exagero dizer: quem caminha pela Afonso Pena num domingo não visita uma feira. Entra num capítulo vivo da história de Belo Horizonte.