Ouvindo...

Silêncio

O silêncio nos angustia, nos atordoa. E aí nos perguntamos, como no poema de Carlos Drummond: “E agora, José?“

“E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José?” Não sei se o leitor já se deu conta, mas vivemos uma época em que abdicamos do silêncio e da fruição do tempo – a cidade e a vida urbana gritam nas 24 horas do dia. Acordamos com o despertador, ouvimos as mensagens no celular, fazemos ginástica ouvindo música, almoçamos assistindo à televisão, quando não em restaurantes repletos de barulho e passamos o dia em meio a um turbilhão de sons. Quando chegamos em casa, se não há ninguém, nenhum ruído, não sabemos o que fazer. Muitos já nem se lembram de um instante em que tudo, absolutamente tudo, está desligado. O silêncio nos angustia, nos atordoa. E aí nos perguntamos, como no poema de Carlos Drummond: “E agora, José?”

Então, consultamos as redes sociais ou ligamos imediatamente a televisão, fazemos qualquer coisa para evitar o pseudo vazio, precisamos de algum som, pois não suportamos a convivência com o próprio pensamento. Afinal, desacostumamo-nos com a contemplação, com o momento do ócio criativo. Alguns sequer sonham. Até os livros são ouvidos e não lidos. Fico a me perguntar se todo esse pânico com o silêncio é porque não nos tornamos estrangeiros de nós mesmos, ou seja, se já não nos suportamos mais. Ou se seria uma tentativa inconsciente de fugir do absurdo da vida que, como dizia Albert Camus, nos obrigaria a pensar e, consequentemente, a ser atormentado. Ficamos tão perdidos e sem esperanças diante de nós mesmos que a última estrofe do poema de Drummond é cirúrgica:

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“Sozinho no escuro\ qual bicho-do-mato,\ sem teogonia,\ sem parede nua\ para se encostar,\ sem cavalo preto\ que fuja a galope,\ você marcha, José!\ José, para onde?”

Em que pese essa ser uma realidade da vida contemporânea, fiquei entusiasmado, ao visitar a bienal mineira do livro e me deparar com uma infinidade de adolescentes leitores, num sábado à tarde, os quais deixaram os celulares de lado (e consequentemente o barulho deles advindo) e optaram pelo prazer da leitura, atividade que só é possível na solidão do silêncio. Não que o ambiente lá fosse silencioso, ao contrário, havia gritos de entusiasmos com a presença de escritores e palestrantes, mas é indubitável que os que lá estavam tinham ao menos a curiosidade pelos livros, hábito que tem se tornado incomum, não só pela dificuldade de concentração, mas também por exigir momentos de “estar consigo mesmo”. Curiosamente, o tema escolhido esse ano foi “Viver é Plural. Ler é Plural”, inspirado pela obra do escritor mineiro Guimarães Rosa, autor que abordou muito a solidão e o silêncio como momentos de contemplação, de sentir o não-dito, de fazer a travessia pelo nosso interior. Na obra “Grande Sertão: Veredas”, Riobaldo se pergunta: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Em “Buriti”, o Chefe Zequiel diz que “no silêncio nunca há silêncio”. E por aí vai...

Portanto, na loucura deste mundo, há de se encontrar momentos para a pausa, para a contemplação, libertando-nos de tudo e todos, o que não se confunde com ausência, mas traz-nos a necessidade de isolamento do ruído externo para que possamos ouvir nossa alma, nosso corpo, meio que num encontro conosco mesmos. Trata-se do momento de auscultar-nos, de ouvir-nos, de ver-nos com os olhos fechados. O ruído nos impede de acessar um mundo que estamos perdendo e o qual as palavras não alcançam, ainda que sejam territórios que tentamos evitar. E por que os evitamos? É que eles nos devolvem a nós mesmos – e, convenhamos, nem sempre a companhia é boa.

Na música, Gilberto Gil nos fala da necessidade destes momentos a sós, até para falar com Deus:

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós/ Tenho que apagar a luz/ Tenho que calar a voz/ Tenho que encontrar a paz/ Tenho que folgar os nós/ Dos sapatos, da gravata/ Dos desejos, dos receios/ Tenho que esquecer a data/ Tenho que perder a conta/ Tenho que ter mãos vazias/ Ter a alma e o corpo nus

Fico por aqui, caro leitor, o que mais prontamente veio ao bico da pena para compartilhar foi este regalo do qual temos nos esquecido: fruir do tempo estando a sós. Eis um dos grandes privilégios que a vida nos brindou e do qual inexplicavelmente nos furtamos.

Ops. Essa semana comemorou-se o aniversário de Lima Barreto, dia 13 de maio, data da assinatura da lei áurea, que aboliu a escravidão no Brasil. À ocasião, 1888, aos 7 anos de idade, ele estava no Largo do Paço quando ouviu a notícia. Anos depois escreveu um artigo, “Maio”, ocasião em que rememorou o mês sagrado pela poesia. Disse que “a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas...” Confessou que em sua vida jamais vira tanta alegria, com dias de “folgança e satisfação”, julgava que dali em diante “não haveria mais limitações aos propósitos de nossa fantasia”. Porém, o inflexível tempo ceifou suas aspirações, seus sonhos de posição, trazendo-lhe à realidade:

-“Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preconceitos, das regras e das leis.”.

Hoje, mais de 130 anos depois, os resquícios deste tempo estão aí, a nos rodear, no meio jurídico, nas esferas de poder, nas escolas particulares, nos condomínios fechados, nos clubes recreativos das classes mais abastadas e até nos elevadores. Todo o legado e preconceito à mostra, às escancaras. Basta ter olhos para ver (e querer). “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”, disse um tal Machado de Assis, em Esaú e Jacó. Em breve, falaremos mais disso.

Ops. Nessa semana também faleceu Pepe Mujica. Independente de qualquer preferência política ou ideológica, é inegável que ele nos trouxe importantes reflexões sobre o que de fato é a liberdade, ao nos ensinar que é possível ser feliz com pouco. Mesmo quando Presidente da República do Uruguai, dirigia um velho fusca azul, doava a maior parte de seu salário a organizações beneficentes, morava em um sítio onde plantava para a própria subsistência. Ao final da vida, pediu para ser enterrado ao lado Manuela, sua querida cadela de três patas, nas sombras de uma árvore que ele mesmo plantou:

- “Me chamam de o presidente mais pobre do mundo, mas eu não sou um presidente pobre. Pessoas pobres são aquelas que sempre precisam de mais, aqueles que nunca têm o suficiente, porque estão num ciclo infinito. Escolhi esse estilo de vida austero, escolhi não ter muitas coisas, para que eu tenha tempo de viver como quero viver.”

- “A vida é uma linda aventura e um milagre. Estamos concentrados demais na riqueza e não na felicidade. Estamos focados somente em fazer coisas e, quando você percebe, a vida passou em vão.”

Eis aí alguém que certamente soube viver o silêncio e, quiçá, a verdadeira liberdade. Tá aí, outro tema palpitante.

Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.