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O assédio sexual deixa marcas

“Ser mulher no Brasil não é simples”, afirmou em decisão a ministra do STF Cármen Lúcia

Mulheres vítimas de assédio sexual são afetadas por sequelas

“O assédio sexual deixa marcas”, eis a frase que chamou atenção em pontos turísticos da Alemanha, no último inverno Europeu. A citação foi estampada em três estátuas de bronze de mulheres nuas, as quais estavam com os seios mais claros do que o restante do corpo, pois tocadas com frequência durante décadas. Segundo os organizadores, as três estátuas “demonstram visivelmente as décadas de ataques dos transeuntes” que deixaram marcas, “assim como ocorre com as pessoas afetadas pela violência sexualizada”.

A campanha, que correu o mundo, nos faz refletir sobre as consequências, muitas vezes permanentes, da prática do assédio sexual, o qual pode causar uma série de sequelas às vítimas, como bem consta da cartilha divulgada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no último mês.

Entre as sequelas:

  • Sentimento de culpa;
  • Tristeza;
  • Inferioridade;
  • Retraimento nas relações com os amigos, parentes e colegas de trabalho;
  • Além de insônia e alterações no sono.
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Diante desse quadro, vê-se a necessidade de avançarmos no âmbito de proteção à mulher contra toda e qualquer forma de agressão. Neste sentido, embora ainda exista um exaustivo caminho a percorrer, nos últimos dias, o Supremo Tribunal Federal nos trouxe um importante avanço na proteção dos direitos das mulheres vítimas de violência doméstica, ao proibir práticas que desqualifiquem a mulher durante a apuração e o julgamento dos crimes. Segundo a decisão na ADPF 1107, é vedada às partes a invocação “de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher”.

Na mesma semana também foi publicada a lei 14.857/24, que entrará em vigor em 180 dias, determinando “o sigilo do nome da ofendida nos processos em que se apuram crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Salientando-se que o sigilo não abrange o nome do autor do fato, ou seja, do ofensor.

Percebe-se, pelas duas novidades, a preocupação do Estado com a proteção dos direitos das vítimas de crimes, em especial das mulheres. As mudanças certamente não serão capazes de apagar as manchas já deixadas nos corações das vítimas, mas poderão impedir que eles continuem a ser tocados em sua dignidade já dilacerada pela violência, muitas vezes repetida sob a forma de tentar legitimar a injustificável agressão.

O que dizia a lei?

Esta preocupação com o direito das vítimas, sobretudo mulheres, é nova no Brasil, basta nos lembrar que as Ordenações Filipinas de 1603, no Brasil Colônia, previa em seu artigo 25, do Livro X, que “toda a mulher, que fizer adultério a seu marido, morra por isso”. Também o Código Criminal Imperial de 1830 que, em seu artigo 250, criminalizava o adultério cometido pela mulher casada, punindo-a com pena de prisão com trabalho por um a três anos.

Já no Código Penal da República de 1890, o adultério era considerado crime contra a segurança do estado civil e doméstico, e pasme: no caso das mulheres bastava a mera presunção de sua ocorrência. Até 1988, a mulher casada, vítima de estupro praticado sem violência, mediante grave ameaça, precisava de autorização do marido para processar o agressor, pois o legislador entendia que seria para ele uma exagerada exposição social.

Defesa da honra

Portanto, tradicionalmente a legislação brasileira sempre concedeu aos homens, nas relações domésticas, um poder sobre o corpo e o comportamento das mulheres, sobretudo nos casos de adultério, demonstrando que a dominação masculina, que não surge de um estado natural, está arraigada na história cultural de nosso povo. Daí a construção da tese de legítima defesa da honra, segundo a qual o homicídio ou a violência eram aceitáveis quando a conduta da ofendida supostamente ferisse a honra do agressor, abrindo espaço para a legitimação das mortes cometidas por homens em razão do ciúme.

Esse entendimento encontrou respaldo em diversos julgamentos ao longo da história, perdurando por décadas, até ser sepultado pelo Supremo Tribunal Federal, em 2023. No julgamento, afirmou a Ministra Cármen Lúcia: “A sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas”. E, em seguida, “ser mulher no Brasil não é simples”.

Caso Ângela Diniz

Um bom exemplo é o conhecido “caso Ângela Diniz”, bem detalhado no imperdível podcast da rádio Novelo que leva o nome do local do crime, “Praia dos Ossos”, em Búzios. Ele é um mosaico da histórica impunidade em casos de homens acusados de crimes graves contra mulheres, os quais se ancoram em uma suposta defesa da honra masculina para legitimar suas condutas.

Em 30/12/1976, a socialite mineira Ângela Diniz, conhecida como “A pantera de Minas”, aos 32 anos, foi assassinada por seu namorado, Doca Street, na casa de veraneio dela, com quatro tiros, sendo três no rosto. Imediatamente, o crime foi espetacularizado, havendo grande aceitação da conduta de Doca Street como um ato de legítima defesa de um homem atingido em sua honra. Dizia-se: “Ângela feriu a sensibilidade de Doca”.

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Assim, a vítima foi acusada pela mídia e por setores da sociedade como corresponsável pelo crime, pois era uma “mulher de vida fácil”, que “denegria os bons costumes”. As reportagens pautavam-se na figura da mulher e em seu modo de vida, em um julgamento exclusivo do comportamento sexual da mulher.

A “Revista Gente Fatos e Fotos” publicou, na edição nº 869, em 17/04/1978: “Quatro tiros mutilaram o rosto da mulher que com seu comportamento livre, sua autenticidade, seu desprezo pelas convenções, sua coragem existencial e seu vazio, se tornara uma espécie de ovelha negra do pacato rebanho da tradicional família mineira”. Quando do julgamento, o advogado de defesa, Evandro Lins e Silva esbravejou:

“Ângela era uma mulher sedutora, belíssima, como todos vêem. Belíssima, encantadora. A Pantera de Minas. Mas, desgraçadamente, ela seguiu um caminho diferente daquele que nós, homens menos avançados nesse tema, procuramos seguir. É uma realidade”; “Ela não podia admitir certos princípios. Ela queria a vida livre, libertina, depravada, senhores jurados! Desgraçadamente, fez uma opção, fez uma escolha naquele instante, deixou os filhos, veio para o Rio de Janeiro”.

Na mesma linha seguiam algumas amigas da vítima, como Kiki Garavaglia: “A Ângela tinha se tornado aquela... A mulher pecado, que leva os homens à loucura, tá entendendo? Uma coisa meio assim”.

A criminalização da vítima era tamanha que o sarcástico e provocativo cartunista Henfil registrou no “Pasquim”: “Estão quase conseguindo provar que Ângela matou Doca”.

Neste cenário, ao fim e ao cabo, Doca Street foi condenado a dois anos de reclusão, tendo a pena substituída. Apenas em 1981, em razão de movimentos feministas, com o famoso slogan “Quem ama não mata”, o réu foi submetido a novo julgamento, quando então foi condenado por homicídio qualificado a 15 anos de reclusão.

Infelizmente, não obstante as novas legislações e posições dos Tribunais, essa realidade ainda se perpétua. O nosso país detém a 5ª maior taxa de feminicídios do mundo. Em média, uma mulher é morta a cada cinco horas no Brasil. Temos cerca de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres.

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Ops. Em 1935, Frida Kahlo leu nos jornais que um homem havia matado sua mulher com vinte punhaladas. Quando do julgamento, ele se defendeu dizendo que foram apenas alguns cortes. Para denunciar a reiterada violência masculina, ela pintou o quadro “Unos cuantos piquetitos!” (1935). Nele, o sangue transborda da tela, quase a nos atingir (leitor/espectador), talvez a nos lembrar que a nossa indiferença é uma forma de cumplicidade.


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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.